O Estado de S. Paulo, n. 46568, 17/04/2021. Notas & Informações, p. A3

O CNJ e as polícias dos tribunais



Como uma das consequências do princípio da separação dos Poderes, a Constituição de 1988 assegurou ao Judiciário autonomia administrativa e financeira. No entanto, essa autonomia tem sido interpretada de forma um tanto peculiar, como revelou o Estado.

Com base numa resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tribunais têm agido para criar suas próprias polícias. O Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2) instalou sua “polícia judicial”, que conta com cerca de 230 agentes distribuídos entre a sede do tribunal no Rio de Janeiro e as seções judiciárias. O TRF-4 (Região Sul) e o TRF-5 (Região Nordeste) estudam adotar o modelo, assim como os Tribunais de Justiça de Sergipe, Rio Grande do Sul, Roraima, Maranhão, Acre e Distrito Federal.

Em primeiro lugar, o CNJ não pode autorizar a criação de nenhuma polícia. Sua competência se dirige em sentido oposto. Não é atribuir poderes, mas exercer “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, como dispõe a Constituição.

Tem-se, assim, um desvirtuamento do papel do CNJ. O órgão administrativo, criado com o propósito de promover o bom funcionamento do Poder Judiciário dentro de suas atribuições, amplia essas atribuições. O responsável por controlar os abusos estimula a ocorrência de novos abusos.

Não é demais notar que os tribunais têm também sua parcela de responsabilidade. Deveriam ser os primeiros a saber que uma resolução do CNJ é incapaz de autorizar a criação de uma nova polícia.

Além da evidente incompetência do CNJ na matéria, chama a atenção a perigosa confusão que se faz em torno dessas polícias de tribunais.

Segundo a Resolução 344 do CNJ, editada em setembro do ano passado, “o exercício do poder de polícia administrativa se destina a assegurar a boa ordem dos trabalhos do tribunal, a proteger a integridade dos seus bens e serviços, bem como a garantir a incolumidade dos magistrados, servidores, advogados, partes e demais frequentadores das dependências físicas dos tribunais em todo o território nacional”.

No entanto, essas polícias são muito mais do que meras forças de segurança nos tribunais. Por exemplo, a Resolução 344 prevê que elas poderão “realizar investigações preliminares de interesse institucional, desde que autorizadas pela presidência do tribunal”.

Tal atribuição investigativa vai muito além, por exemplo, do que dispõe a Lei 12.694/2012, autorizando os tribunais a “tomar medidas para reforçar a segurança dos prédios da Justiça”. Com esse poder de investigação dado pelo CNJ, o Judiciário assume um papel que não lhe cabe.

Num Estado Democrático de Direito, a polícia judiciária – e não “judicial” ou administrativa – investiga, o Ministério Público denuncia e o Judiciário julga.

Outro ponto da Resolução 344 que pode conduzir a confusões e arbítrios refere-se à possibilidade de a polícia do tribunal “realizar atividades de inteligência na produção do conhecimento para a segurança orgânica e institucional do tribunal com objetivo de mitigar e controlar riscos, observada a regulamentação interna do tribunal”. A depender da forma como se aplique esse dispositivo, especialmente em tempos de rede social, os tribunais poderão se considerar autorizados a uma atuação muito além de seus limites administrativos.

“Confunde-se o poder de polícia no âmbito da competência administrativa com o exercício concreto de polícia”, disse ao Estado o professor Floriano de Azevedo Marques, diretor da Faculdade de Direito da USP. “Como as polícias têm assento constitucional, a norma é inconstitucional, pois cria polícia que não está prevista na Constituição”, concluiu.

Além de todos esses problemas, é acintoso que, em plena pandemia, tribunais estejam, com essas polícias, criando novos cargos no funcionalismo público, em mais uma manifestação de alheamento da realidade. Em vez de cortar gastos, estão criando despesas com pessoal, com base em ato administrativo.

O Judiciário dispõe de autonomia, mas não de arbítrio. No Estado Democrático de Direito, não lhe cabe ter sua própria polícia.