O Estado de S. Paulo, n. 46579, 28/04/2021. Política, p. A10

Oitiva 'trava' inquérito de Bolsonaro sobre PF

Rafael Moraes Moura


A indefinição do Supremo Tribunal Federal sobre como deve ser o depoimento do presidente Jair Bolsonaro tem travado o inquérito que apura interferência indevida do chefe do Executivo na Polícia Federal. Aberta a pedido da Procuradoria-geral da República após o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro deixar o governo levantando uma série de acusações contra Bolsonaro, a investigação completou ontem um ano sem chegar a um desfecho. Na semana passada, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, prorrogou o inquérito por mais 90 dias.

Segundo o Estadão apurou, a tendência da Procuradoria, hoje, é pedir o arquivamento do caso. Moro deixou o Ministério da Justiça e Segurança Pública acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal para obter acesso a informações sigilosas e relatórios de inteligência. "O presidente me quer fora do cargo", disse o ex-juiz da Lava Jato à época, ao deixar claro que a saída foi motivada por decisão de Bolsonaro.

O objetivo do inquérito é apurar se foram cometidos os crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução da Justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Ou seja, o foco das investigações é tanto Bolsonaro quanto o próprio Moro.

Em 27 de abril de 2020, o então decano do Supremo, ministro Celso de Mello, determinou a abertura do inquérito e fixou um prazo de até 60 dias para que a PF ouvisse Moro, conforme solicitado pela PGR. Em sua decisão de 17 páginas, Celso afirmou que o presidente da República "também é súdito das leis", apesar de ocupar uma "posição hegemônica" na estrutura política brasileira.

Uma das últimas etapas da investigação, o depoimento de Bolsonaro não ocorreu porque o plenário do STF precisa ainda decidir se o chefe do Executivo deve prestar esclarecimentos pessoalmente, como determinou Celso, ou por escrito.

A discussão foi iniciada no plenário em outubro do ano passado, antes da aposentadoria de Celso de Mello, mas ainda não foi retomada. Com a saída do decano, o STF fez uma manobra interna, com a redistribuição do inquérito, que acabou encaminhado para outro integrante da Corte antes da chegada de Kassio Nunes Marques ao tribunal, que substituiu Celso. Dessa forma, o STF evitou que um inquérito que investiga Bolsonaro acabasse nas mãos do primeiro ministro do tribunal indicado pelo presidente.

"Penso que o STF, como está em muitos atritos justificados com o Executivo e o Legislativo, está 'escolhendo' estrategicamente as disputas, para evitar um desgaste excessivo com os demais poderes", disse a professora de Direito Penal da FGV Direito SP Raquel Scalcon.

Nas últimas semanas, o STF se desgastou com o Congresso, ao mandar abrir a CPI da Covid, e contrariou o Palácio do Planalto no julgamento em que deu aval para que governadores e prefeitos de todo o País proíbam a abertura de igrejas e templos para enfrentar a pandemia. O inquérito Moro x Bolsonaro coloca o STF em rota de colisão com o chefe do Executivo.

"Uma resposta rápida nem sempre é uma resposta consistente. O rápido não é sinônimo de bom em termos de prestação jurisdicional. Mas a demora excessiva também é um problema", afirmou Raquel.

Desistência. Em setembro do ano passado, Celso de Mello contrariou o procurador-geral da República, Augusto Aras, e determinou que Bolsonaro prestasse depoimento pessoalmente à Polícia Federal. Para Celso, a possibilidade de depoimento por escrito é uma prerrogativa de presidentes apenas nos casos em que são testemunhas, e não quando são investigados – o que é o caso.

Como informou o Estadão, Celso se amparou em precedentes da Corte para embasar o entendimento de que os chefes de poderes, quando sujeitos a uma investigação criminal, não têm direito à prerrogativa de depor por escrito.

Após a decisão, a Advocacia-geral da União (AGU) entrou com recurso no Supremo, alegando que o tribunal já autorizou que o então presidente Michel Temer prestasse depoimento por escrito, mesmo na condição de investigado. Em 2017, o ministro Luís Roberto Barroso autorizou que o emedebista apresentasse esclarecimentos por escrito sobre uma investigação envolvendo irregularidades no setor portuário. O ministro Edson Fachin, relator de um outro inquérito, aberto com base no acordo de delação premiada da JBS, garantiu a Temer o mesmo direito.

Com Celso de Mello afastado temporariamente por licença médica, Marco Aurélio Mello decidiu paralisar o inquérito e encaminhar o processo para o plenário virtual, acirrando os ânimos na Corte. "A indefinição em penal é muito ruim", disse Marco Aurélio à reportagem. O ministro já divulgou o voto a favor de Bolsonaro depor por escrito. "Em um estado de direito, é inadmissível o critério de dois pesos e duas medidas", afirmou o atual decano no voto divulgado, mas ainda não computado.

Depois que retornou às atividades do tribunal, Celso tirou a discussão da esfera online e pediu para que o caso fosse pautado no plenário "físico", em sessão transmitida ao vivo pela TV Justiça (agora elas são realizadas por videoconferência). Perto da aposentadoria, em um de seus últimos atos no Supremo, Celso votou para que Bolsonaro prestasse o depoimento presencialmente – apenas o ministro aposentado já votou oficialmente no caso até agora.

Procurados pela reportagem, o Supremo, a PGR e Moro não se pronunciaram. O Palácio do Planalto informou que "não se manifesta sobre processos em tramitação".