Título: O piano e Napoleão
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 20/05/2005, Outras Opiniões, p. A13

A América Latina, que sempre teve a imagem de um caldeirão social, entrou nos anos 90 como lugar de arrumação, sob a forte influência das políticas mundiais de estabilização, à base do neoliberalismo. Estas, dando predominância ao econômico sobre o social, não ofereceram as respostas reclamadas pela sociedade, que procurou novos caminhos, levando ao poder líderes-símbolos da esquerda latino-americana.

No Brasil, embora seja o país que mais investe na área social (12% do PIB), a demanda social é imensa, agora incluindo a classe média empurrada para baixo.

Há um clima de insatisfação que permeia a América Latina. Os acontecimentos verificados na Venezuela com as marchas para derrubar Chávez e para segurar Chávez, os panelaços de Buenos Aires que afastaram três presidentes, os da Bolívia que levaram à renúncia de Sanchez de Lozada e agora pressionam para desestabilizar Mesa, a queda de Gutiérrez no Equador, têm todos em comum, o que se chama de política de multidões, caracterizada pela forma anárquica de ação, quando a comunicação em tempo real reproduz o seu poder numa escala geométrica, que se desdobra numa explosão em cadeia. Foi este o modelo que funcionou na queda dos regimes da Europa do Leste. Na Argentina os piqueteiros, tocadores de bumbos e a massa invadiram praças e ruas, investidos de um poder quase constituinte anárquico, em que as pessoas diziam ''que se vayan todos, que no quede ni um solo''.

Nossos regimes não adquiriram estabilidade capaz de conjurar crises institucionais.

Para aumentar preocupações, o Latino-barômetro, uma agência que tem o apoio de BID e Bird, publica uma série de 1996-2004, que avalia o apoio popular à democracia e traz números perturbadores. Assim, 46% dos argentinos e 33% dos uruguaios aceitam um regime não democrático que resolva os seus problemas econômicos e no Brasil esse número sobe para 54%. Outro índice é o grau de satisfação com a democracia que é de 28 % no Brasil, 34% na Argentina e 45% no Uruguai. O país de maior satisfação é a Costa Rica, com 48%, e o Peru é o menor, com 7%.

Esses números são um alerta aos políticos sobre a responsabilidade de que estão investidos.

Em meio a tudo isso, a casa Bonhams anuncia o leilão do penico de Napoleão, com sua coroa, que ele não usou na Ilha de Elba, prisioneiro dos ingleses. Sobre penico de Imperador se conta que José Clemente Pereira, um dos promotores da Independência, foi visitar Pedro I, que estava doente. O Imperador disse que queria urinar. Ele tentou pegar o penico, mas o Chalaça interrompeu: ''quem tem a honra de levar o penico ao Imperador sou eu.''

Napoleão foi o homem que comandou as multidões para fazer um poder solitário. Seria seu neto a ''criança da Europa'', o menino Gaspar Hauser, que surgiu sem passado e sem memória para ser misteriosamente assassinado por um desconhecido. Para poetas e escritores do século 19 foi a visão da solidão. Lembro-me do verso de Verlaine: ''Je suis venu, calme orphelin''

Era a antítese da multidão, como o ''homem do piano'', que foi encontrado numa praia deserta do sul da Inglaterra, como Gaspar Hauser, sem memória, sem falar e sabendo apenas uma coisa: tocar piano.

O problema é que as multidões não vivem de solidão nem de música.