Título: O peru do Carnaval ou do Natal
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 27/05/2005, Opinião, p. A11

Não acredito que o nosso estimado ex-Presidente esteja, com a metáfora do peru, querendo dizer que o governo vá terminar na faca e no bucho

O presidente Fernando Henrique é um homem educado, amável, cordato, esperto, malicioso, simpático e sedutor. Nunca se revela a um adversário e não sei se algumas vezes a algum amigo. Não o vejo com ares de confissões e ter confidentes, nem dado a confessor. O que o teria levado a entrar em metáfora dos bichos sem chegar à fábula, gênero que tem sempre uma conclusão moral? Disse ele, num rasgo que não é do seu cotidiano, que o governo era um ¿peru bêbado no Carnaval¿. A reação foi desproporcional à boutade. Afinal um peru bêbado no Carnaval está no espírito da coisa, para brincar e divertir-se. Depois veio a correção: ¿Não é no Carnaval, é no Natal.¿

A emenda é que prejudica o soneto. Peru bêbado no Natal não é para divertir-se, mas para preparar-se para morrer, girando num círculo imaginário em que se diz ¿melhora sua carne para a Ceia¿. Ora governo ¿peru de Natal¿ é destinado a faca, vai morrer e termina na barriga. No Maranhão vai mais longe: as suas ossadas são, no dia seguinte, aproveitadas num ensopado com repolho e vinagreira, que se chama Garibaldi, é gostoso danado e combina com a ressaca.

Não acredito que o nosso estimado ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso esteja, com a metáfora do peru, querendo dizer que o governo vá terminar na faca e no bucho. Acredito mais no Carnaval, censura aceitável de oposicionista ao governo, misturando a pândega momesca como corrupção de costumes, enquanto o outro peru, o do Natal, seria a corrupção em bloco de agentes administrativos. Aliás, a interpretação carnavalesca das palavras do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso está mais dentro do contexto, pois no país só se fala em corrupção, palavra que o meu saudoso Osório Borba, sempre lembrado, dizia ser a mais feia da língua portuguesa, porque pronunciada monossilabicamente levava a coisa feia.

A pesquisa de 2004 sobre este tema na América Latina, do BID e Bird, diz que no Brasil 34% das pessoas crêem que a corrupção não vai acabar nunca e 52% acreditam que os policiais são subornáveis, 36% os juízes e 39% alguém nos ministérios.

A corrupção está inserida nas idéias políticas do mundo ocidental: é a decisiva lança que se usa contra um adversário, para desqualificá-lo. Adriano Moreira diz que o primeiro discurso que existe sobre democracia é o de Péricles aos mortos na Guerra do Peloponéso, há 24 séculos. Ali já defendia Fídias da acusação do roubo do ouro da estátua de Atenas.

O deputado Roberto Jefferson entrou na onda dos exemplos animais e disse que o PT é o escorpião e o PTB, o sapo sendo picado na travessia do rio. O senador Vitorino Freire ¿ que foi meu adversário no Maranhão ¿ na véspera de uma eleição disse de sua luta: ¿meu candidato é um chapéu de aparar égua, aparando a correria das éguas da oposição¿. Se continuarmos assim nesses exemplos, vamos dizer que o PMDB está como ¿bode na chuva¿, berrando ensopado.

Mas a verdade é que o panorama político está como ¿burro doido¿, como se diz no Nordeste, pulando para todo lado.

Não sei a hora em que se vai surgir ¿raposa em galinheiro¿.

Mas há uma parcela otimista em tudo isso. Na pesquisa referida só 17% dos brasileiros acredita que a corrupção pode acabar ¿ em 20 anos (!) desde que haja um esforço de clero, nobreza e povo¿

Mas há exageros. Muitas vezes, ela existe e a percepção é menor que ela, e outras, ela é maior do que aparece, coisa de peru no Carnaval ou no Natal