Título: Da democracia e seus sonhos
Autor: José Sarney*
Fonte: Jornal do Brasil, 09/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Há 2600 anos os gregos tentaram uma forma de auto-governar. Os cidadãos escolheriam os governantes e seriam responsáveis pelos rumos de sua cidade. As reformas de Sólon são a matriz da experiência a que deu-se o nome de democracia. Depois ela desapareceu. Teve séculos de sombra. Ressurgiu algumas vezes até que se impôs definitivamente como a forma avançada de concluir-se a História.

Diz-se, hoje, e Fukuyama apossou-se da descoberta, que a História do mundo ocidental terminou, com duas vertentes imutáveis: a democracia e economia liberal de mercado. Tudo o que ocorrer daqui à frente não modificará a essência desses dois rumos. O último estertor contrário acabou-se com a Queda do Muro de Berlim, o fim do comunismo.

Cá nos meus botões, acho que não é bem assim. Acho que a democracia resolveu o problema da liberdade do governo nascido da vontade popular, mas não está ainda claro que necessariamente tenha sido o caminho do bem-estar do homem, da justiça, do progresso material e espiritual. Ela é o caminho incontrastável, como dizia Churchill, porque sendo pior não existe melhor, mas ainda temos muito chão a percorrer.

Uma coisa é a democracia formal, aquela que é fácil de construir através de processos eleitorais, outra é a democracia capaz de assegurar o bem-estar social, a igualdade de oportunidades, o exercício pleno da cidadania.

Mesmo a sua face eleitoral e as instituições dela decorrente vivem em crise permanente. Tome-se o nosso exemplo atual, aqui no Brasil. Estaria completo o processo democrático que fosse vulnerável às coisas que estamos assistindo? Alguma coisa não está certa. A meu ver chegamos ao fim de um ciclo, de uma etapa que se esgotou, ou, se usarmos a palavra mais forte, apodreceu. A resistência a construir um novo modelo com a reforma política é um dos pontos incompreensíveis do comportamento da classe política, sem a cobrança vigorosa da mídia.

E por falar nesta, que adquiriu um poder sem controle, nesse novo tempo tem, juntamente com a sociedade civil, ongs, igrejas, de defender soluções, propor caminhos e não descansar na cômoda posição da denúncia, da crítica, e da condenação. Afinal todos fazemos parte de um todo: a sociedade democrática, pluralista, aberta, complexa. Todos condenados a viver juntos.

Enquanto a democracia não realizar esses ideais permanentes de liberdade e justiça social, estaremos sujeitos a inconformações e raivosas revoltas contra seus valores. Não é por outro motivo que os índices de aprovação da democracia na América Latina são cada vez menores. Esses índices parecem ter uma relação direta com os níveis de pobreza e desigualdade, os maiores do mundo.

E o reflexo desse quadro se projeta no mau funcionamento das instituições - partidos, congresso - e na conduta dos atores do processo político.

A reforma política é, assim, a mais necessária das providências a tomar. Não bastam as depurações periódicas. O sistema leva, numa combinação trágica, à desigualdade e à pobreza, à corrupção e ao ''lixão onde come o gato'', como se diz no Nordeste.

A grande pizza que está acontecendo e ninguém protesta é o abafa das mudanças no processo eleitoral para diminuir as despesas de campanha e acabar com a boca rica do caixa dois.