O Globo, n. 32719, 07/03/2023. Saúde, p. 19

Rede de mentiras

Bernardo Yoneshigue


O Brasil deu início a mais uma etapa da campanha de vacinação contra a Covid-19 com as doses bivalentes, que ampliam a imunidade contra a variante Ômicron e aumentam a proteção dos grupos de risco. Mas, com o novo apelo para que os brasileiros elegíveis procurem os postos de saúde, também voltam a dominar as redes as fake news sobre os imunizantes.

As postagens mais propagadas alegam que as vacinas seriam mais perigosas do que a própria doença e que teriam provocado uma série de infartos súbitos. Porém, os números de ocorrências do gênero não aumentaram após o início da vacinação no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, organizados a pedido do GLOBO, o número de óbitos por infarto em 2021, ano do início da vacinação, foi praticamente o mesmo de dois anos antes, em torno de 95 mil.

As mentiras são disseminadas muitas vezes intencionalmente por grupos que se beneficiam da não adesão às vacinas, mas o formato que dá uma “cara de notícia” leva muitas pessoas a compartilharem o conteúdo por desconhecimento. Especialistas ouvidos pelo GLOBO contam que uma das perguntas ouvidas com mais frequência é de fato se as doses causam doenças cardiovasculares.

As fake news são um perigo para a saúde pública, e o Brasil não é imune à ação do movimento antivacina, afirmam. De acordo com uma pesquisa do Instituto Global de Saúde de Barcelona (ISGlobal), publicada na Nature Medicine, enquanto a intenção de se vacinar contra a Covid-19 aumentou 5,2% na tendência mundial de 2021 para 2022, no Brasil houve uma queda de 3,3%.

Confira a seguir as principais fake news sobre as vacinas bivalentes e por que elas são não são verdadeiras.

Vacina bivalente causa problemas cardíacos

Desde o início da vacinação, circula uma nota da Anvisa de 2021 sobre possíveis riscos de miocardite e pericardite, tipos de inflamação no coração, após o imunizante da Pfizer. Isso porque a análise das doses passa por um controle rígido de autoridades sanitárias, que monitoram efeitos adversos das aplicações, mesmo incomuns.

De fato, o efeito foi confirmado, embora seja extremamente raro — uma análise com mais de 190 milhões de vacinados publicada na JAMA Network Open constatou pouco mais de oito ocorrências a cada um milhão de doses. A maioria dos casos se resolveram sozinhos, e os estudos comprovaram que a baixa incidência faz com que os benefícios ultrapassem, em muito, qualquer risco.

— Com as doses bivalentes, os efeitos adversos estão na mesma frequência que com as doses anteriores, elas não têm efeitos adicionais. Esses eventos, muito raros, existem, mas o risco é muito pequeno em relação ao enorme benefício em prevenir a evolução para Covid grave —diz o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime Barbosa, professor da Universidade Estadual de São Paulo.

A Covid-19 já foi associada a inúmeras complicações para não vacinados, inclusive de miocardite. Um trabalho com 43 milhões de britânicos, publicado na revista científica Circulation, mostrou que a doença oferece um risco até 11 vezes maior de desenvolver uma inflamação do miocárdio do que o observado pelas vacinas.

Recentemente, a agência reguladora dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), disse investigar uma possível relação entre alguns casos de derrame e a aplicação da dose bivalente em idosos. Mas as análises “não indicaram nenhum risco aumentado”.

Nova dose foi testada em apenas oito camundongos

Outra fake news que repercutiu nas redes com o início da campanha com as doses bivalentes é que elas teriam sido testadas em apenas oito camundongos antes de serem liberadas para a população. A informação é falsa.

— De forma nenhuma seriam aprovadas se não houvesse estudos em humanos. O que aconteceu com as bivalentes é que foi observado um desfecho mais prático. Em vez de se avaliar o impacto nas hospitalizações e óbitos, foi avaliada a imunidade induzida, o nível de anticorpos no sangue —explica Naime Barbosa.

Os testes clínicos da dose bivalente da Pfizer, que conta com metade da formulação da cepa ancestral, e a outra metade da Ômicron BA.4/ BA.5, contaram com 900 participantes nos Estados Unidos com idades a partir de 12 anos. Todos humanos.

Imunizante não aumenta proteção contra a Covid

Outro argumento que tem sido compartilhado é de que a vacina bivalente não seria necessária, pois não aumentaria a proteção contra a Covid-19. Porém, a imunologista Letícia Sarturi, doutora em biociências e fisiopatologia, explica que a nova formulação induz uma resposta imunológica mais específica às variantes atuais do vírus.

— A imunidade com a vacinação vai se especializando a cada nova dose, porque o sistema reconhece de maneira mais específica aquela proteína do vírus, gerando células de memória que duram mais tempo —explica.

Esse benefício tem sido comprovado por diversas análises. Uma revisão da Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA) deste mês constatou que aqueles que receberam a dose bivalente tiveram uma redução de 52,1% nas hospitalizações pela Covid-19 em comparação com os vacinados há pelo menos seis meses que não receberam a aplicação extra.

Nos EUA, uma avaliação dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) identificou que a dose atualizada reduz em 41,2% os casos sintomáticos de Covid-19 em relação ao reforço com a dose antiga (monovalente) entre maiores de 65 anos. Ambos os estudos foram durante a prevalência das subvariantes BQ.1 e XBB.1.5, respectivamente.

Lula não recebeu a vacina

Depois do evento de lançamento da campanha de vacinação no Brasil, no último dia 27, perfis nas redes sociais alegaram que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que recebeu a dose bivalente do vice-presidente, Geraldo Alckmin, durante a cerimônia, não teria se imunizado de verdade.

Os usuários afirmam que Alckmin teria “jogado o conteúdo da seringa fora” antes da aplicação. No entanto, o momento, capturado em vídeo, mostra que o vice-presidente, médico por formação, apenas moveu o êmbolo para retirar o ar da seringa antes de administrar a vacina, como é recomendado.

Vacinas causam variantes

Há ainda quem defenda que o avanço do vírus, com suas variantes e sublinhagens, é consequência das vacinas. No entanto, os especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam que a lógica é inversa.

— Nenhuma vacina da Covid-19 tem a capacidade de provocar novas variantes do vírus. É exatamente o contrário, o que estimula as variantes é a circulação do vírus. Quanto menos pessoas vacinadas, maior a probabilidade de novas mutações — diz diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Juarez Cunha.

Além disso, a proteção das vacinas ajuda a combater o vírus de forma mais rápida, dando menos tempo para ele se modificar no organismo.