Título: A roda da política
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 05/11/2004, Opiniões, p. A11

A eleição dos EUA é um exemplo do dinamismo político. Há um fenômeno novo, que deve assustar daqui para frente: a libertação do eleitor das pesquisas

Já li, não me recordo onde, que ''em política nada fica parado''. Ela é dinâmica e se contorce a todo instante, mudando de forma e de luz. Aqui se repete sempre que é como uma nuvem, atribuindo-se esta comparação a Magalhães Pinto, embora ela remonte ao Império e tenha sido, se não me falha a memória, do Conselheiro Dantas, esse baiano habilidoso que também disse sobre a Abolição: ''Nesse assunto não parar, não retroceder, não precipitar''. Era sem dúvida uma definição antecipada do ''muro''.

Os políticos têm grande capacidade de ressurreição. Sobrevivem a muitas derrotas. Ninguém morre de repente, como as pessoas de infarto do miocárdio. As doenças que matam os políticos levam anos, assim como ''anemia política maligna'' ou ''artrite reumatóide''. Numa a causa tem que ser bem estudada, mas a pessoa vai perdendo os glóbulos vermelhos, o sangue se modifica, vai ficando amarelo e vai perdendo sangue e força, definhando até a morte. Processo lento e explícito. Já na artrite, seus ossos incham, há dores no andar e no corpo todo, até ficar imobilizado. É claro que estou falando das doenças políticas, sem compromisso com patologia e sintomas dessas doenças.

A eleição dos Estados Unidos é um exemplo claro do dinamismo político. Por outro lado há um fenômeno novo, que deve assustar daqui para frente: a libertação do eleitor das pesquisas. Há uma rebelião silenciosa que as tornam vulneráveis. Todas detectaram um empate e a quase certeza de que havia uma maioria da opinião pública contra a política unilateral, a guerra preventiva e a violência de Bush. A eleição revela uma consolidada reação conservadora, julgando não somente a guerra do Iraque, mas liberalização sexual, aborto, valores religiosos e morais, crença na força e na missão messiânica dos EUA de comandar o mundo sem ouvir ninguém. Bush, nessa tarefa de identificar esse sentimento, foi muito competente, e seu discurso depois de eleito revela isso: ''A América falou''. E falou grosso.

Uma técnica difícil mas bem característica da política e do agir dos políticos é saber ultrapassar malogros com a fórmula de começar a pensar na próxima eleição. O Partido Democrata sustenta que a derrota de Kerry foi boa para Hillary Clinton, que passa a ser invencível na próxima eleição, que Bush vai radicalizar, terá insucesso no Iraque e na economia. E isso passa a ser anestésico e sonho. Uma vez, no Maranhão, aconteceu o contrário. O deputado Vieira da Silva estava tão preocupado e receoso de derrota que não quis aceitar a vitória. Procurou-me e disse ''aquele fulano me traiu, beltrano fez corpo mole e deu nisso: não estou eleito''. Com o boletim do TRE na mão, disse-lhe: ''Mas não é isso que está aqui na apuração da eleição, você está eleito''. Ele retrucou: ''Não estou eleito''. E foi difícil convencê-lo que tinha ganhado a eleição.

Para outros há confiança demais e decepção pelo resultado. É o que ocorre, agora, com o senador Daschle, de Dakota, líder dos democratas no Senado, que perdeu a eleição. Ou Fernando Henrique, quando sentou-se na cadeira de prefeito.

Os resultados da eleição americana são importantes pelos recados que nos mandam os filhos do Tio Sam.