Valor Econômico, v. 20, n. 4888, 27/11/2019. Política, p. A8

Federalização de casos é rara na Justiça

Joice Bacelo
Beatriz Olivon


Relatora do processo em que se discute federalizar a investigação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), já esteve nesta mesma posição, quase uma década atrás, em um caso semelhante. Ela foi a relatora da federalização das investigações da execução do vereador pernambucano Manoel Mattos, conhecido por atuar em defesa dos direitos humanos e denunciar grupos de extermínio que agiam na divisa entre Pernambuco e Paraíba.

O assassinato do parlamentar foi encomendado por um sargento reformado da Polícia Militar que teria participação em um dos grupos. Manoel Mattos, que também atuava como advogado e era parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE, foi morto a tiros, em janeiro de 2009, em uma casa de praia na Paraíba.

Esse foi o primeiro caso federalizado da história do Brasil. O julgamento ocorreu no ano de 2010, no STJ, e o voto da ministra Laurita Vaz foi seguido de forma unânime pelos demais julgadores da 3ª Seção. Foi o único Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) - o nome técnico do procedimento - em que ela atuou como relatora.

Com a decisão, as investigações da execução do vereador, que eram de responsabilidade de policiais e promotores locais, foram transferidas para a Polícia e o Ministério Público Federal (MPF) e a competência para julgar o caso passou a ser da Justiça Federal em Pernambuco. Antes quem estava à frente era a Justiça da Paraíba.

O IDC surgiu com a reforma do Judiciário, na Emenda Constitucional 45, de 2004, e ainda é um procedimento raro. Até o começo de novembro foram apresentados 24 pedidos para transferir a competência de investigações da esfera estadual para a federal e nem todos tratavam realmente de pedidos de federalização. Alguns eram habeas corpus classificados de forma errada. Do total, só oito tiveram o mérito julgado: em cinco deles o pedido de federalização foi negado pelos ministros e em três aceito.

Laurita Vaz participou de quatro julgamentos. Um deles, o caso envolvendo o assassinato de Manoel Mattos, como relatora, e os outros três como julgadora da 3ª Seção. Dos três, ela negou federalizar dois e aceitou um - acompanhando os votos dos relatores dos casos.

O IDC nº 24, que trata da federalização das investigações das mortes de Marielle e Anderson, está no gabinete da relatora, para que ela profira o seu voto, desde o dia 30 de outubro. Não há data definida para o julgamento e, por estar em segredo de justiça, poderá ser realizado a portas fechadas.

Havia a expectativa de que isso pudesse ocorrer hoje, mas a relatora não pautou o caso. A 3ª Seção vai se reunir novamente no dia 11 de dezembro. Será a última chance de o julgamento ocorrer ainda em 2019.

Os ministros levam em conta três critérios para aceitar os pedidos de federalização. É necessário que o crime envolva grave violação a direitos humanos e que exista risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais. É preciso também provar a incapacidade ou a falta de vontade de instâncias e autoridades locais em oferecer respostas.

O caso envolvendo o assassinato do vereador Manoel Mattos, no entendimento dos ministros da 3ª Seção, preencheu todos eles. A relatora Laurita Vaz levou em conta, no seu voto, o fato de se estar diante de “grupos criminosos” cuja a atuação fere “a própria base do Estado”. Segundo consta no processo, cerca de 200 pessoas foram assassinadas naquela região desde os anos 90.

Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados em março de 2018. Segundo a investigação - que hoje está nas mãos da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - os executores seriam o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz. Ambos são réus no processo.

Há uma diferença grande - e que deve pesar na decisão dos ministros -, no entanto, entre o caso Marielle e Anderson e o do vereador Manoel Mattos. O IDC em que Laurita Vaz foi relatora no ano de 2010 tinha o apoio dos governos de Pernambuco e da Paraíba e também das autoridades locais que conduziam o processo de investigação. A família do vereador também era favorável.

No caso Marielle e Anderson, tanto autoridades locais como a família da vereadora têm se posicionado contra a federalização. Os pais, a irmã, a filha e a viúva de Marielle enviaram carta aos ministros afirmando que as investigações avançaram com as prisões de dois suspeitos e que a mudança representará um retrocesso. No Twitter, a viúva, Mônica Benício, afirmou no dia 21 que “uma das linhas de investigação envolve o filho do presidente Jair Bolsonaro, o que, evidentemente, colocaria a PF sob suspeição”.

O pedido de federalização foi feito pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em setembro - antes de vir à tona o depoimento do porteiro do condomínio em que Jair Bolsonaro tem casa e que afirmava ter autorizado a entrada de Queiroz, um dos supostos executores, no dia do crime.

Um dos argumentos usados pela procuradora é o de que as investigações não haviam ainda chegado aos mandantes nem descoberto a motivação do crime. Ela citou ainda haver indícios de envolvimento do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), Domingos Brazão, que está afastado do cargo.

A 3ª Seção é composta por 10 ministros, mas nove deles irão se manifestar sobre a possibilidade de federalizar as investigações do caso Marielle (o presidente não vota). O voto da relatora é importante, segundo fontes, porque tende a ser o condutor do julgamento. Os três IDCs aceitos até agora na Corte tiveram unanimidade, ou seja, todos os demais julgadores seguiram os relatores.

Gilson Dipp, advogado e ministro aposentado do STJ que participou do IDC de nº 1, sobre a federalização da investigação da morte da missionária Dorothy Stang, afirma que, apesar de já haver precedentes, “é o caso concreto que vai definir”. Naquela ocasião, a 3ª Seção considerou que as autoridades estaduais estavam empenhadas na apuração dos fatos e que não haveria necessidade de levar o caso para a Justiça Federal, com o risco de dificultar o andamento do processo e atrasar o desfecho.

Segundo Dipp, no caso Marielle e Anderson, o processo está caminhando e há dúvidas sobre os benefícios da federalização. Ele considera que na esfera federal o ministro Sergio Moro poderia influenciar as investigações. O ministro, acrescenta, já vem se manifestando, por exemplo, quando considerou um “disparate” incluir o presidente Jair Bolsonaro nas apurações.

Para Dipp, a demora não é justificativa suficiente para a federalização, já que pode decorrer da complexidade do crime e, no caso, já há suspeitos presos. “O inquérito está praticamente concluído”, diz. (Colaborou Raphael Di Cunto)