Valor Econômico, v.20, n. 4930, 30/01/2020. Legislação & Tributos p.E2

 

O mau uso da desconsideração

 

Emerson Soares Mendes


O instituto da desconsideração da serve para que se atinja o patrimônio pessoal dos sócios, jamais dos administradores

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial n° 1.766.093-SP e, conforme este julgado, não foi permitida a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade cooperativa para atingir os bens de membros do conselho fiscal, pois, em suma, estes conselheiros não teriam praticado atos de gestão e não teriam agido com culpa no exercício de suas atribuições.

Com o devido respeito à justificativa utilizada pelo STJ, percebe-se que há uma verdadeira banalização no uso do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que se distancia em muito da sua finalidade, o que poderia ser evitado com a mera análise da finalidade da outorga de personalidade jurídica às pessoas jurídicas, bem como pela análise das funções atribuídas aos membros do conselho fiscal e do respectivo regime jurídico de responsabilidade.

De acordo com os arts. 45 e 985 do Código Civil, o registro do ato constitutivo da pessoa jurídica outorga-lhe personalidade jurídica, de maneira que a pessoa jurídica passa a ser sujeito de direitos e obrigações, bem como a ter patrimônio próprio e distinto do patrimônio individual de cada um de seus sócios.

Logo, a personalidade jurídica estabelece autonomia entre os patrimônios da pessoa jurídica e de seus sócios, permitindo que haja, segundo o regime jurídico de cada tipo societário, uma limitação da responsabilidade patrimonial do sócio por ilícitos praticados pela pessoa jurídica, vez que a pessoa jurídica, ao adquirir personalidade jurídica, passa a ter existência e patrimônio próprios, responsabilizando-se pelos danos causados com seu próprio patrimônio.

Assim, quando a pessoa jurídica dotada de personalidade jurídica é, de um modo geral, utilizada com deturpação de sua finalidade primordial ou serve de instrumento para a prática de fraude, admite-se a cessação parcial dos efeitos da personalidade jurídica, desde que presentes os requisitos legais necessários, desconsiderando-se a autonomia do patrimônio pessoal dos sócios, para que estes respondam por obrigações da pessoa jurídica.

Portanto, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica serve para que se atinja o patrimônio pessoal dos sócios, jamais para atingir o patrimônio pessoal dos administradores de uma pessoa jurídica. Trata-se de impropriedade esta permissão constante do art. 50 do Código Civil, pois contraria o fim primordial da criação do instituto da personalidade jurídica (estabelecimento de autonomia entre o patrimônio da pessoa jurídica e os patrimônios pessoais dos sócios) e desconsidera que o administrador não detém participação no capital social da pessoa jurídica, considerando-se aqui o administrador que não é sócio.

Ainda, o próprio Código Civil no art. 1.016 prevê a responsabilidade civil direta do administrador pelos danos causados a terceiros, quando da prática de atos de gestão da pessoa jurídica, o que reforça a impropriedade da permissão existente no art. 50 do Código Civil para atingir o patrimônio pessoal do administrador por meio da desconsideração da personalidade jurídica.

Conforme decorre das atribuições previstas no art. 1.069, incisos I a VI, do Código Civil (e art. 56 da Lei nº 5.764/71), os membros do conselho fiscal exercem, em síntese, uma atividade fiscalizadora da administração da pessoa jurídica, não se confundindo com os atos de gestão, cuja execução é atribuída aos membros da diretoria, não sendo admitida sua delegação conforme previsto no art. 1.018 do Código Civil. Logo, os membros do Conselho Fiscal jamais praticarão atos de gestão.

Contudo, a responsabilidade dos membros do conselho fiscal segue o mesmo regime jurídico do regime da responsabilidade dos administradores (art. 1.070, caput, do Código Civil), ou seja, os membros do conselho fiscal, ao agirem com culpa no exercício de suas atribuições, responderão diretamente pelos danos causados, o que independe da desconsideração da personalidade jurídica também.

Após uma pesquisa não exaustiva, constatou-se que os tribunais brasileiros não se atentam a tais detalhes, mas, em suma, verificam se houve, ou não, a prática de atos de gestão, o que seria suficiente para a responsabilização dos administradores (membros da diretoria e do conselho de administração) e dos membros do conselho fiscal por meio da desconsideração da personalidade jurídica, desde que presentes os pressupostos legais, em flagrante desconsideração ao regime de responsabilidade civil legal de tais membros de uma pessoa jurídica.

Portanto, com o devido respeito, a decisão proferida pelo STJ (e as decisões dos outros tribunais consultadas) mostra-se incompatível com os dispositivos do próprio Código Civil, visto que os membros do conselho fiscal (considerando-se conselheiros que não sejam sócios) não só não praticam atos de gestão, mas também não possuem responsabilidade tal como a dos sócios (especificamente prevista no art. 1.095 do Código Civil para as sociedades cooperativas), ao contrário, possuem responsabilidade direta pelos danos causados por culpa no exercício de suas atribuições.

Logo, uma simples análise do fim primordial da personalidade jurídica, da desconsideração da personalidade jurídica e, ainda, das atribuições dos órgãos sociais das pessoas jurídicas com seus respectivos regimes jurídicos, leva à constatação da banalização de institutos jurídicos, que são usados de maneira deturpada e dissonante da própria legislação.