Valor Econômico, v. 20, n. 4811, 09/08/2019. Opinião, p. A12

Receita é cerceada em meio à disputa de poder na Justiça


 

Procuradores do Ministério Público, ministros do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal de Contas da União e o ex-juiz e ministro da Justiça, Sergio Moro, protagonizam uma estranha peça onde todos, em tese, buscam fazer justiça e ser justos, mas cujo desfecho tem sido quase o oposto. Há tempos os fios desencapados no STF provocam decisões estranhas e contraditórias de seus ministros, que agem como bem entendem. A divulgação de gravações obtidas pelo site The Intercept abriu um subenredo em uma história cheia de peripécias e ainda longe do fim. Uma das vítimas são as investigações normais sobre o correto pagamento de impostos que a Receita Federal faz, por dever de ofício.

Para todos eles, e também para o presidente Bolsonaro, as gravações foram obtidas de forma ilegal e não há confirmação de sua veracidade, embora não haja quem diga que o conteúdo é falso. Mas à medida que as gravações vêm a público, indicando que os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato e o então juiz Sergio Moro poderiam ter ultrapassado os ditames legais em seu trabalho, alguns envolvidos, ministros do STF e do TCU, se comportam como se estivessem diante de provas cabais. E resolveram tomar providências imediatas, atropelando as boas regras da lei, quando gravações apontaram que o procurador Deltan Dallagnol andou estimulando investigações baseadas em fiapos de suspeitas sobre o presidente do STF, Dias Toffoli, o ministro Gilmar Mendes e seus cônjuges.

As fitas foram repassadas ao site por hackers, que presos, confessaram. O primeiro sinal de afoiteza veio do ministro Sergio Moro, que indicou a membros da cúpula do governo e parlamentares ter conhecimento das apurações da Polícia Federal, órgão subordinado a ele - o que é vetado - e se apressar em sugerir sua destruição. Como ex-juiz da Lava-Jato, ele sabe mais, mas foi breve e incisivamente lembrado pela PF de que não pode fazer isso.

Nessa hora reapareceu do nada o inquérito sobre "fake news" e ameaças ao Supremo, que há meses nada apura, e que foi criado sem objeto, com um relator que não poderia ter sido indicado, mas sorteado - o ministro Alexandre de Moraes -, com direito a realizar investigações sendo parte do processo e deixando de lado a Procuradoria-Geral da República, a quem cabe fazer isso.

Raquel Dodge, a procuradora-geral, em discursos e por escrito, disse que o STF está desrespeitando a lei. De qualquer forma, as ações de Alexandre de Moraes sugerem que o inquérito é uma proteção genérica contra tudo que envolva ministros do STF. Ele pediu cópias de todas as gravações e do inquérito da PF, algo que o ministro Luiz Fux já havia feito, o que até seria natural, já que "fake news" ou não, membros do STF são citados. Porém, ele determinou a interrupção de investigações da Receita Federal, além de pedir informações detalhadas de 133 pessoas sobre as quais se apuram eventuais problemas com o Fisco - algo que tem a ver diretamente com as fitas.

Tendo possivelmente como base apenas o que soube pelas gravações, Moraes, que não tinha qualquer conhecimento sobre o que fazia a Receita, disse que há na investigação "claro indício de desvio de finalidade", falta de "critérios objetivos de seleção" e que está sendo feita para atingir o STF e o Poder Judiciário "sem qualquer indício de irregularidades por parte desses contribuintes" - cuja esmagadora maioria ele não tem a menor ideia de quem são.

O TCU, que não tem competência para isso, foi longe e exigiu que a Receita detalhe todos os procedimentos abertos contra autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, seus cônjuges e dependentes, por nada menos que 5 anos. E, num ato de intimidação direta, pediu o nome e matrícula de todos os servidores da Receita designados para atuar nesses processos ou que tenham acessado informações relativas a eles.

Dessa forma, um processo que envolve marginais que hackearam a força-tarefa da Lava-Jato, da qual vários ministros do STF se tornaram críticos desafetos, termina no já clássico argumento brasileiro de que os poderosos da República não podem ser investigados - agora pelo Fisco. A cúpula da Receita enviou carta ao secretário Marcos Cintra lembrando o óbvio. A lei tributária "não excepcionaliza agentes públicos, sejam eles ministros, parlamentares ou auditores fiscais de cumprirem as normas tributárias e estarem sujeitos à análise e eventuais auditorias, que podem ou não resultar em exigência de tributos". Enquanto digladiam entre si, os órgãos da Justiça isentaram-se do escrutínio da Receita, ao contrário dos demais cidadãos.