Valor Econômico, v. 20, n. 4889, 28/11/2019. Especial, p. F4

Para especialistas, autonomia de órgão fiscalizador é essencial

Gleise de Castro


Prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e ainda em processo de formação, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) será responsável por editar normas e fiscalizar procedimentos de empresas e instituições sobre o tratamento de informações pessoais. Caberá ao órgão federal determinar sanções, como bloqueio do banco de dados de empresas que desrespeitarem a lei e multas de até 2% de seu faturamento, com limite de R$ 50 milhões. Apesar de vinculada à Presidência da República, a autoridade contará com autonomia técnica, assegurada pela lei que a criou, sancionada em julho de 2019, originada de medida provisória de 2018.

A ANPD ainda depende da edição de um decreto estruturador, com diretrizes para seu funcionamento, e da indicação de seus diretores, que deverão passar por sabatina no Senado. Ela contará com um conselho diretor, composto de cinco diretores, e com o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, colegiado de 23 membros de diferentes setores, não remunerados e com mandato de dois anos. Estão previstas também corregedoria, ouvidoria, assessoria jurídica própria e unidades administrativas.

Sua atuação se assemelha à de organismos equivalentes da Europa. Para o advogado Renato Opice Blum, coordenador do curso de Direito Digital e Proteção de Dados do Insper e da Fundação Armando Alves Penteado (Faap), a principal diferença é que as agências de todos os demais países têm autonomia plena, sem vinculação a governos. Outra peculiaridade do modelo brasileiro é permitir que outros órgãos já existentes, destinados à proteção da privacidade e intimidade, continuem atuando e autuando - Procons, Ministério Público, Banco Central, CVM e agências setoriais, como Anatel e ANS. A ANPD terá exclusividade sobre o tema proteção de dados e a incumbência de organizar os demais órgãos.

“Vamos ter muita fiscalização e muita proteção”, diz Blum. A seu ver, vai haver um pouco de confusão no início, mas depois as coisas devem se acomodar.

Isabella Hamaoui, gerente em cyber security e privacidade da KPMG, considera um ponto de bastante preocupação o fato de a ANPD não ter independência plena. “Os modelos europeus garantem a independência plena desses órgãos”, diz a especialista. No caso do Information Commissioner’s Office (ICO), do Reino Unido, isso é garantido pela cobrança de uma taxa dos agentes de tratamento de dados. “O ICO se custeia e se mantém com essa taxa, não precisa necessariamente das multas para isso”, compara Hamaoui. No Brasil, as multas arrecadadas serão destinadas ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Para Henrique Somadossi Prado, sócio da Maia Sociedade de Advogados, a vinculação à Presidência coloca em cheque a isenção da autoridade. “Esperava-se que ela tivesse uma estrutura independente, inclusive independência financeira”, afirma. Outra crítica é sobre a demora na instituição do órgão, que já deveria estar em funcionamento, diz o advogado, emitindo diretrizes para as empresas se adequarem à lei.

Um ponto importante que ainda não está claro é se o novo órgão terá um viés mais punitivo ou consultivo, de orientação, como ocorre com os equivalentes da Europa. “A atuação só pela ótica da fiscalização se torna só punitiva. A autoridade também pode ser a favor dos negócios, trabalhando em conjunto com as empresas”, afirma Jefferson Kiyohara, diretor da prática de compliance na consultoria ICTS Protiviti. Para Isabella Hamaoui, a agência só poderá ser levada a sério se tiver um viés educativo e não apenas punitivo. “Há quase 50 pontos que precisam ser regulados pela autoridade. ”

Para José Pela Neto, sócio da área de risk advisory na prática de cyber risk da Deloitte, a autoridade também precisa ser proativa. Seus parâmetros precisam ser revistos de acordo com a evolução da tecnologia. “Do contrário, o país abre uma brecha para utilização inadequada da tecnologia ou para engessar as empresas”, afirma. Neste primeiro momento, diz o consultor, a atuação da ANPD deve ser norteada pelo diálogo. “A lei carece de um nível grande de detalhe”, justifica.