Valor Econômico, v. 20, n. 4829 04/09/2019. Especial p. A12

'Ações de cobrança contra a União somam R$ 700 bi'

Entrevistado : André Luiz de Almeida Mendonça


As ações de cobrança contra a União nos tribunais superiores somam hoje cerca de R$ 700 bilhões. "É quase uma reforma da Previdência", cuja economia é estimada em torno de R$ 900 bilhões em dez anos, salientou André Mendonça, ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU). Responsável pela contestação do tamanho desse passivo, ele disse que os valores decorrem de demandas de grandes empresas e, sobretudo, dos Estados.

Em entrevista ao Valor, o ministro explicou que o maior embate dos Estados com a União se refere à execução de contragarantias dadas por ocasião dos refinanciamentos de dívidas. "Há uma grande preocupação com esses pagamentos", afirmou, assim como há inquietação, também, com os pagamentos de precatórios estimados para 2020.

São os governos estaduais os que mais burlaram a Lei de Responsabilidade Fiscal no tocante à despesa de pessoal. Vários retiraram da contabilidade da folha de salários as despesas com aposentados e pensionistas, deixando tão somente os gastos com pessoal ativo. Mendonça defende que, se necessário, coloque-se em lei os critérios de contabilidade que precisam ser definidos pelo Tribunal de Contas da União e pela Secretaria do Tesouro.

Na visão do ministro, o peso do gasto com a folha de pessoal na administração pública deve estar entre as prioridades. Ele defendeu alteração no regime de estabilidade dos servidores públicos federais, que foi instituído para proteger os funcionários de pressões políticas, mas que teve como efeitos colaterais "a acomodação e a ineficiência".

Está no radar do governo federal, por exemplo, a ampliação do período de estágio probatório, hoje de dois a três anos, para algo entre cinco a sete anos.

Classificado por Bolsonaro como "terrivelmente evangélico" e "supremável" (por estar na lista do presidente para ser indicado ao STF), André Mendonça também falou sobre o Orçamento de 2020, em que a AGU foi preservada dos cortes e ficou com dotação igual à deste ano, e sobre os acordos de leniência com as empreiteiras envolvidas na Lava-Jato. Ele garantiu, ainda, que não há a "fritura" do ministro da Justiça, Sérgio Moro, pelo Planalto.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O secretário da Fazenda, Waldery Rodrigues, disse recentemente que o impacto do gasto com pagamento de precatórios em 2020, de R$ 24 bilhões, será superior ao ganho com a reforma da Previdência no próximo ano. Ele adiantou que vai conversar com ministros dos tribunais superiores para discutir o que pode ser feito. O sr. está acompanhando essas conversas?

André Mendonça: Há uma grande preocupação com esses pagamentos. Nos tribunais superiores, temos em discussão mais de R$ 700 bilhões em demandas contra a União. É quase uma reforma da Previdência. Tem de tudo: PIS/Pasep, Lei Kandir, Fundeb, critérios de correção dos precatórios, contragarantias que os Estados prestam para a União nos refinanciamentos etc.

Valor: A União deve tudo isso?

Mendonça: A União está defendendo que não deve esses valores ou que tem direito a reaver alguns valores. Há uma guerra dos contratos, em que a União foi garantidora dos Estados perante os bancos. Alguns Estados, para não se tornarem inadimplentes, entram com pedidos no STF para que não se execute a garantia da União. Alguns ministros deferem a liminar porque os governadores alegam que, se a execução for feita, deixam de pagar despesas com saúde, educação. O ministro, nesse contexto, fica em posição difícil.

Valor: Como resolver?

Mendonça: Sendo rigorosos no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. O grande problema dos Estados é em função de um histórico de descumprimento da LRF, em especial nos gastos com pessoal.

Valor: Mas historicamente ninguém é punido por violar a LRF.

Mendonça: Por isso que a gente tem que defender o cumprimento rigoroso. Ou cumpre ou haverá sanção. É preciso considerar gasto com pensionistas e aposentados também como despesa de pessoal. Mas os Estados separaram, considerando gasto com pessoal somente os ativos.

Valor: Minas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul fizeram isso...

Mendonça: O problema é que os tribunais de contas dos Estados validaram e não houve punição. Por isso temos que ter um rigor único contábil seguindo os padrões da Secretaria do Tesouro Nacional, que devem nortear todas as administrações.

Valor: Essa padronização deveria ser estabelecida em lei?

Mendonça: Ou estabelecer em lei, ou o Tribunal de Contas da União criar um padrão único junto com a Secretaria do Tesouro.

Valor: Alguns Estados precisariam de prazo para se adequar.

Mendonça: Sim, mas o rombo foi tamanho que, se fizer isso simplesmente de uma forma homeopática, vamos levar mais de uma década para sanear as contas.

"Não se pode trabalhar um Estado gravemente enfermo com homeopatia; a terapêutica tem de ser vigorosa"

Valor: Então, qual a saída?

Mendonça: Nossa esperança era ver a possibilidade de se fazer uma redução excepcional da jornada de trabalho dos servidores públicos com a correspondente redução de salário. Mas, infelizmente, não foi essa a posição do STF. O presidente da Câmara está pensando em trabalhar a questão via emenda à Constituição. Porque não se pode trabalhar um Estado gravemente enfermo com remédio homeopático, tem que ter uma dose terapêutica mais vigorosa no primeiro momento, senão inviabiliza os investimentos desses Estados por muitos anos.

Valor: Como o governo federal pode ajudar?

Mendonça: A União não tem mais recursos para dar uma ajuda. São duas linhas que precisam ser trabalhadas: os gastos com pessoal e a redução do Estado, em especial com a privatização de algumas estatais. O ministro Paulo Guedes tem defendido uma repactuação do pacto federativo e melhor distribuição de receitas entre os entes federal, estadual e municipal, mas isso tem que vir acompanhado de medidas de integridade e de responsabilidade.

Valor: Essa redistribuição não pode acabar indo para o gasto com pessoal, como se costuma fazer?

Mendonça: Na cessão onerosa, o Guedes tem falado de uma proporção de 70% para a União e 30% para Estados e municípios. A cessão onerosa vai gerar receita de cerca de R$ 100 bilhões e vai possibilitar investimentos ao longo de dez anos de até R$ 1 trilhão na indústria de petróleo, que vão gerar emprego e renda. Eu estou otimista com a economia.

Valor: O sr. falou sobre um novo pacto federativo. Ele incluiria a eliminação das competências concorrentes e uma redistribuição de responsabilidades entre a União, os Estados e os municípios?

Mendonça: A princípio, sim, porque se está transferindo receita, a gente tem que transferir a responsabilidade também. Quando o Guedes fala em pacto federativo, ele se refere muito à visão da política norte-americana em que o grande gestor dos recursos e responsável pelas políticas públicas não é o ente central, mas sim os entes locais. Temos que transferir receitas, redefinir responsabilidades e ter um programa de contínuo de profissionalização da gestão pública. Há dois grandes ralos de dinheiro público: um é a corrupção, e o outro, a ineficiência.

Valor: O sr. tratou pessoalmente dos acordos de leniência com as empreiteiras envolvidas na Lava-Jato. Essas empresas poderão participar da desestatização e ajudar na retomada da economia?

Mendonça: Legalmente elas estão aptas. A grande questão é que elas vão ter que reaprender a trabalhar. Toda a modelagem de ganhos através da influência não vai existir mais. É a competitividade nua e crua. Essas empresas vão ter que trabalhar sem a perspectiva de ter um grupo que se reúne para ganhar contratos.

Valor: O sr. mantém a expectativa de arrecadação com os acordos de leniência?

Mendonça: Mantenho a expectativa de R$ 25 bilhões em dois anos. Neste ano já foram R$ 11 bilhões. É uma meta ousada.

Valor: A mensagem presidencial, enviada ao Congresso junto com o Orçamento, fala em uma reforma administrativa que vai mudar as regras relativas à estabilidade. Como o sr. vê essa possibilidade?

Mendonça: Me permita ir um pouco na origem da estabilidade. A estabilidade no serviço público surgiu para se evitar perseguição política, coisas do tipo "Faça isso que eu estou mandando, mesmo que seja errado, senão eu te jogo para fora". Então, a estabilidade cria a possibilidade de servidores públicos terem uma atuação de Estado, e não de governo. Só que isso gerou um efeito colateral, que é a acomodação e a ineficiência. Vamos ter que buscar algum ponto de equilíbrio. Talvez esse ponto seja manter um nível de estabilidade ao menos em algumas carreiras que têm poder de decisão [auditores, advogados, diplomatas]. Mas, para aquele que bate carimbo, talvez seja possível flexibilizar um pouco com mecanismos de mensuração de qualidade mais efetivos, ter remuneração variável. Esse tema consta na mensagem do presidente e eu sei que está sendo discutido.

Valor: Nessa discussão haveria mais medidas restritivas do benefício da estabilidade?

Mendonça: Outra possibilidade é aumentar o tempo do estágio e criar mecanismos mais independentes de avaliação. Está na lei e a gente é pouco rigoroso com o período de estágio, que é só de dois anos. É um tempo muito pequeno. Talvez possamos jogar para cinco ou sete anos. Vou dar um exemplo: neste ano, em São Paulo, fiz a primeira demissão por desídia na instituição. E onde eu tenho ido tenho dito que não é perseguição, mas, se houver casos de colegas que fazem do serviço público um bico, a corregedoria está orientada a ter uma atuação séria. Onde eu vou tenho falado isso.