O Globo, n. 32681, 28/01/2023. Economia, p. 12

Aos 100 anos, Previdência tem o desafio da inclusão

Cássia Almeida


A Previdência Social, que transfere recursos para 37 milhões de pessoas — quase o número de habitantes do Canadá — chega aos cem anos com o desafio de aumentar a arrecadação, diante do déficit de R$ 265,4 bilhões e do envelhecimento da população.

Foi em 24 de janeiro de 1923, com a Lei Eloy Chaves, que nasceu a Caixa de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e foi criado um seguro que garantia pensão, aposentadoria, assistência médica e auxílio farmacêutico.

A fundação da entidade é considerada o marco do nascimento da Previdência Social no Brasil, mais de dez anos antes do que nos Estados Unidos, que só implantou a proteção em 1935, depois da Grande Depressão. No Brasil, a medida veio depois de anos de reclamações trabalhistas e greves de ferroviários, que se cotizavam para ajudar as viúvas dos companheiros.

Nos anos 1930, eram em torno de 140 mil brasileiros cobertos pelo seguro, hoje são 100 milhões. Uma reforma profunda para aumentar a idade mínima de aposentadoria e mudar as regras para entrada no sistema foi feita em 2019, buscando reduzir os impactos nas contas públicas.

 

A Previdência, contudo, ainda apresenta um déficit significativo, e o caminho, na opinião de especialistas, seria aumentar a arrecadação.

— Eu acho que sempre foi uma lacuna importante nas políticas previdenciárias não ter estimulado a contribuição. Qual foi a grande campanha para incentivar a contribuição à Previdência? Foi uma falha de todos os governos não terem feito grandes campanhas, principalmente dirigidas para a população de renda mais baixa, que precisa mais do seguro — afirma Luís Eduardo Afonso, professor da Faculdade de Economia da USP.

Para a economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ana Amélia Camarano, pode-se chegar ao limite de ter dificuldade de manter a Previdência por escassez de contribuintes. E não se trata apenas do envelhecimento da população, diz ela, mas dos trabalhadores de aplicativos e do pessoal do MEI, que paga uma contribuição pequena e sem a participação do empregador.

— Quando essas pessoas começarem a se aposentar, aí o déficit vai aumentar bem.

A informalidade no mercado de trabalho hoje chega perto de 40%, segundo dados do IBGE.

Política de cuidados

Ana Amélia diz que, no mundo, algumas soluções vêm surgindo. O Japão está incluindo idosos, mesmo aposentados, no mercado de trabalho, com eles voltando a contribuir à Previdência. Outro caminho é dar condições para mais mulheres trabalharem:

—Vínhamos numa tendência de crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, mas, desde 2018, ela vem caindo.

Ela defende uma política de cuidados com o público feminino que tem dois benefícios: vai empregar mulheres que vão contribuir para Previdência e permitir que as mães com filhos e idosos para cuidar possam trabalhar e também recolher para o sistema:

— Tem que montar uma rede de cuidados, principalmente para as crianças pobres, que sofreram muito na pandemia. Na Inglaterra, há estudos que mostram que haverá uma mobilidade social decrescente dessa geração.

Afonso lembra que o mercado de trabalho está passando por mudanças abruptas, que foram intensificadas pela pandemia, e que o sistema previdenciário vai ter de dar conta. Um exemplo típico, diz ele, é o trabalho em plataformas:

— São pessoas que não têm vínculo estabelecido, com relação de trabalho mais fluida e renda mais volátil.

O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, diz que faltam alguns aspectos da reforma de 2019 que não foram implementados no regime dos servidores públicos e que não há ambiente para nova reforma agora:

— A União não implantou a entidade gestora única do regime dos servidores nem o equacionamento dos déficits financeiro e atuarial.

Sonia Rocha, economista aposentada do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que hoje praticamente a população inteira está protegida na velhice. Quem não conseguir se aposentar pela Previdência e ficar sem renda tem direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência carentes de um salário mínimo.

Ela defende mudanças periódicas na Previdência para "ajustá-la às dinâmicas demográficas e do mercado de trabalho, assim como às necessidades de proteção social".

— Essas mudanças têm que privilegiar o aspecto distributivo e as questões de financiamento. Há ainda que considerar as complementaridades entre Previdência social e transferências assistenciais — afirma Sonia.

Para a economista, algumas questões básicas são a cobertura da enorme informalidade previdenciária, a integração do BPC, que é um benefício assistencial, ao Bolsa Família e a unificação da Previdência rural e urbana num sistema único contributivo:

— O que se busca é um maior equilíbrio da proteção social, que hoje privilegia os idosos em detrimento das crianças, o que é evidente pelos diferenciais de taxa de pobreza por faixas etárias.

Distribuição de renda

Muitos analistas afirmam que a nossa Previdência é um dos maiores programas de distribuição de renda do mundo, senão o maior, diz a socióloga Maria Lúcia Werneck Vianna, professora aposentada do Instituto de Economia da UFRJ e especialista em seguridade social e gestão pública.

— É um programa superlativo. Com a inclusão da aposentadoria rural, ficou um sistema redistributivo.

Desde as primeiras Caixas de Aposentadoria, o sistema vem expandindo sua cobertura, estendendo a proteção a trabalhadores rurais e àqueles que não conseguiam ter tempo de contribuição para requerer o pecúlio. Num primeiro momento, os benefícios eram inferiores ao salário mínimo, mas todos foram igualados ao piso na Constituição de 1988.