Título: Vladimir Herzog - 30 anos depois
Autor: Eduardo M. Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Outras Opiniões, p. A15

Dossiê-Herzog - prisão, tortura e morte no Brasil, livro de Fernando Pacheco Jordão, lançado em 1979 e relançado agora, e Vlado - 30 anos depois, de João Batista de Andrade, um filme extraordinário sobre Vladimir Herzog e a tragédia de sua morte, são fundamentais para que se entenda pouco mais o que aconteceu com o Brasil durante o regime militar.

A ditadura ficou mais frágil depois que Vlado morreu, provocando uma reação coletiva que os generais não conheciam. Em seguida vieram as lutas pela anistia, as greves do ABC, a revitalização do movimento universitário, mais tarde as Diretas-Já. Foi esse o nosso caminho para a democracia.

Muitos brasileiros perderam a vida antes de Vlado, e da mesma maneira. Como Flavio Molina, que amanhã terá o que resta do corpo, finalmente identificado, trasladado de São Paulo para o Rio. Ou como Virgílio Gomes da Silva, cujo laudo do próprio Instituto Médico Legal de São Paulo prova que foi golpeado até a morte. Pelo caminho ficaram muitos e muitas. Outros convivem até hoje com o fantasma da tortura.

Conheci Vladimir Herzog quando trabalhei na revista Visão. Ele era editor de Cultura. Naquela época, a censura penalizava não apenas a imprensa, mas também os livros, o teatro, a música e o cinema. Vlado pensava ser cineasta, além de jornalista. Juntava os textos a imagens bem enquadradas, com cortes perfeitos. O resultado foi a paixão pela televisão. Vlado via no telejornal a possibilidade de informar instantaneamente, mas também o que alguns teóricos desprezam: o aprofundamento da notícia, o histórico de cada fato. ''Os fatos estão inseridos num determinado momento, num lugar, numa sociedade. São uma história com passado e presente e vão interferir no futuro. O bom jornalismo é o que tem começo, meio e fim'' - falava como o professor que foi de tanto ''foca''.

Trabalhou por um bom tempo na BBC de Londres, onde também estava Fernando Pacheco Jordão, outro grande jornalista. Voltaram e aprimoraram a linguagem do jornalismo na TV. Fernando foi para a TV Cultura de São Paulo, tentando produzir o melhor naquelas condições. Iniciou o telejornal Hora da Notícia, para o qual levou Vlado como editor e João Batista de Andrade - que além de cineasta premiado é o atual secretário estadual de cultura - como repórter especial. Montaram o que se chamava de ''uma bela redação'', com repórteres jovens e combativos.

Vlado nasceu na antiga Iugoslávia e desde pequeno soube o que era perseguição. Sua família, judia, fugiu das tropas nazistas na Segunda Guerra Mundial. Um perseguido do nazismo, naturalmente, jamais engoliria a censura, jamais deixaria de amar e procurar a liberdade.

Na redação do Hora da Notícia havia um sistema que hoje faz parte da história do jornalismo: como as proibições da censura chegavam por telex, todas eram pregadas na parede, que ficou coberta por esses telegramas. Quem quisesse saber se determinado assunto estava censurado, era só olhar. Se não houvesse proibição, ''mandava ver'' na matéria. Isso tem um significado importante: não havia auto-censura no Hora da Notícia. A censura era só a oficial, e suas ordens entendidas de forma literal.

Há alguns casos famosos. Era proibido citar o nome de dom Helder Câmara. No Hora da Notícia, quando se referiam a ele, diziam: ''o arcebispo de Recife e Olinda disse isso e aquilo'', como se ninguém soubesse quem era. Para a palavra ''crise'', também proibida, escreviam ''problema'', ''questão'', o que ficasse parecido.

No dia 24 de outubro de 30 anos atrás, depois de ter sido procurado em casa pela polícia, Vlado resolveu se apresentar na manhã seguinte. Ao terminar aquele dia, um sábado ensolarado, Vlado foi morto nas dependências do DOI-CODI, na rua Tutóia, no bairro do Ibirapuera.

Em Dossiê Herzog, Fernando Pacheco Jordão faz, entre outros, o impressionante relato da reação de Clarice, a mulher de Vlado, aos diretores da TV Cultura e a quatro outras pessoas que foram à sua casa, e ficaram em silêncio. Percebendo o que havia ocorrido, desesperada, ela gritou:

- Mataram o Vlado! Eles mataram o Vlado, que não tinha nada, não fez nada. Eles mataram o Vlado!

A ditadura disse que foi suicídio. Mas Clarice lutou e a justiça reconheceu que Vlado foi assassinado. Menos de um ano depois veio a anistia aos presos políticos e exilados. A democracia era mais que um sonho.

É preciso conhecer e contar essa história. O livro de Fernando Jordão e o filme de João Batista de Andrade contribuem para que esses crimes contra a pessoa humana nunca mais se repitam no Brasil, e para que sua dedicação à causa da liberdade e da democracia sejam uma luz permanente em nossa história.

Por isso, propus, junto com o senador João Capiberibe e outros, uma sessão especial no Senado em homenagem a Vladimir Herzog para o próximo dia 26. Trinta anos depois de sua morte Vlado está mais vivo do que nunca.