O Globo, n. 32640, 18/12/2022. Opinião, p. 2

Garganta profunda

Merval Pereira


O PT não entendeu até agora o que aconteceu na eleição presidencial. Depois de ter sido derrotado em 2018 com um candidato “de raiz”, venceu desta vez por uma diferença ínfima tendo Lula como candidato. É claro que houve um uso abusivo da máquina pública, mas nada indica que Lula venceria se não tivesse o apoio de forças políticas de outras tendências.

O novo governo tem que dar motivos para que parte desse eleitorado que votou em Bolsonaro sem ser bolsonarista volte a acreditar no partido e em Lula. Para isso, precisa governar sem o radicalismo de grupos petistas, e sem a arrogância petista. Lula saiu do governo com 80% de aprovação, portanto muitos dessa metade que votou em Bolsonaro já gostou em algum momento do Lula.

O desgoverno de Dilma Rousseff, e as revelações de corrupção da Lava-Jato, confirmadas por confissões e devoluções de dinheiro roubado dos cofres públicos, fizeram com que o antipetismo levasse parte desse eleitorado, desinformado sobre o passado político dele, a escolher o que seria a antítese do PT e de Lula: um Bolsonaro com fama de ilibado, nacionalista, anticorrupção.

Nada disso se confirmou, os piores prenúncios, sim. Mesmo assim, na eleição presidencial, Lula teve pouco mais de 50% de votos. Uma diferença muito pequena, que só foi possível devido ao caráter de frente ampla que se formou. A montagem do novo governo começa a demonstrar que o PT não mudou, apesar das sinalizações que demonstram que precisa mudar para unir o país.

Mas desistir da Izolda Cela, uma técnica em educação reconhecida, com resultados concretos de melhoria do ensino no Ceará, para colocar o governador Camilo Santana, eleito senador pelo PT, é uma demonstração de que a prioridade é ser petista. Além da capacidade técnica testada concretamente, Izolda tem para apresentar até mesmo movimentos políticos importantes. Era do PDT, saiu rompida com o grupo de Ciro Gomes, e apoiou a candidatura de Lula.

Como não há lugar para dois representantes do Ceará no ministério, Camilo Santana, de quem Izolda era vice-governadora, quer a vaga para si, e ainda que Izolda continue sendo sua segunda no ministério da Educação. Me parece um equívoco, até mesmo do ponto de vista conceitual: mulher só serve para ser a segunda? Por que Camilo Santana precisa ser ministro, se foi eleito senador?

Desistir da dra. Nísia Trindade, presidente da Fiocruz, para colocar em seu lugar um deputado do PT porque o partido acha que tem que ter as pastas de Saúde e Educação, é um engano revelador. É perigosa essa tendência petista de achar que ganhou a eleição sozinho. Quem ganhou a eleição foi Lula, apoiado pelo PT e por uma coligação de centro, que vai do centro-direita, como o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, e a senadora Simone Tebet, à centro-esquerda, com a ex-ministra Marina Silva.

Grupos antibolsonaristas que não são necessariamente do PT precisam ser contemplados nesse novo governo. É o caso da senadora Simone Tebet que, no segundo turno, foi fundamental para a vitória de Lula. É compreensível que a gula do PT exija o ministério do Desenvolvimento Social por causa do Bolsa Família, mas é outro engano. Patrus Ananias, que é petista e foi quem descobriu o potencial eleitoral do Bolsa Família como ministro, não teve grande futuro por causa disso.

O Bolsa Família é ligado essencialmente a Lula, e à sua imagem. Simone Tebet tem razão em querer esse ministério, pois nele terá espaço para uma ação política muito além do Bolsa Família. Além do mais, ela foi escolhida como a coordenadora da área de desenvolvimento social do governo de transição. Por que colocá-la nessa posição se não querem dar a ela o posto? Mas querer que assuma o ministério do Desenvolvimento Social sem o Bolsa Família é uma atitude política mesquinha do PT.

É uma mesquinharia do PT querer tudo para si num momento como esse, em que, mais que durante a campanha, está em jogo a democracia. Lula não pode esquecer da governabilidade, deve saber que seu governo não pode ser só de uma parte das forças políticas que o apoiaram. Se fizer um governo de esquerda e petista, vai impedir que pessoas que não são bolsonaristas olhem para ele com boa vontade.

O PT não ganharia sozinho. Sozinho, não tem maioria no Congresso para aprovar suas demandas — veja-se a PEC da Transição, que subiu no telhado —, e nem mesmo para se defender dos ataques da oposição, que será muito mais forte que hoje com um Parlamento mais conservador, eleito à sombra do bolsonarismo.