O Globo, n. 32641, 19/12/2022. Economia, p. 13

BC autônomo pode ser trava nos gastos

Fernanda Trisotto
Renan Monteiro


O terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva será o primeiro a começar com um dos postos mais importantes da economia já definido: o de presidente do Banco Central (BC). Por causa da autonomia do órgão, aprovada pelo Congresso, Roberto Campos Neto, escolhido por Jair Bolsonaro, estará à frente da autoridade monetária até o fim de 2024. E apesar da promessa de harmonia e respeito institucional feita na última semana por ele e Fernando Haddad, futuro titular da Fazenda, há possíveis pontos de divergência à vista.

Os riscos de atuar pela primeira vez com autoridades de origens antagônicas vão além do debate entre a compatibilidade das políticas monetária e fiscal. Passa pelo uso de reservas internacionais, definição de taxa de juros de longo prazo, fiscalização do sistema financeiro, diretrizes no Conselho Monetário Nacional (CMN), criptomoedas e incentivos econômicos. E podem afetar a inflação, o crescimento e o bem-estar dos brasileiros.

Haddad busca construir uma relação pessoal com Campos Neto. Foi do futuro ministro a iniciativa de pedir uma conversa com o presidente do BC semana passada.

— Começamos bem. Foi um almoço muito cordial, ele apresentou o plano do BC já concretizado, as perspectivas futuras. Nós vamos procurar alinhar porque o Brasil depende deste entendimento — disse Haddad sobre o encontro, em entrevista à GloboNews.

O presidente do BC foi na mesma direção:

— Falamos sobre a importância da coordenação. Ele (Haddad) disse que concordava com quase todos os pontos, então foi uma ótima conversa. Espero obviamente continuar com uma conversa próxima, porque agente entende que é muito importante ter a coordenação entre a política fiscal e monetária.

O futuro secretário executivo Gabriel Galípolo é considerado um trunfo. Ex-presidente do Banco Fator, ele já conhecia Campos Neto e deve ser um dos principais interlocutores com o presidente do BC.

Política de moeda e crédito

Mas as diferenças entre a natureza do governo, que sempre tenta fazer mais, e a dos BCs, que buscam estabilidade financeira, favorecem atritos. Assim, para Arminio Fraga, ex-presidente do BC, a autonomia da autoridade monetária, com mandatos fixos para a diretoria, torna-se, mais importante, para evitar o que ele chama de tentação dos governos de gastar mais e inflacionar “só mais um pouquinho”:

— A tentação mais conhecida é a de aquecer a economia em anos de eleição, daí a importância de se intercalar os mandatos do BC e da presidência (da República).

Para Tony Volpon, ex-diretor do BC, a autonomia do BC não deve trazer conflitos:

— A experiência internacional e as evidências são bastante claras: bancos centrais autônomos entregam inflação mais baixa sem prejudicar o crescimento econômico.

Com a experiência de quem esteve dos “dois lados do balcão”, no BC e na Fazenda, Henrique Meirelles minimiza as chances de ampliação de conflitos no Conselho Monetário Nacional (CMN), responsável por estabelecer as diretrizes da política de moeda e crédito, que tem em sua composição dois ministros e o presidente do BC.

— O BC vai prezar pela sua argumentação e seu voto e ponto. Pode haver concordância ou discordância. Já tivemos reuniões muito tranquilas e outras muito intensas — diz Meirelles, sobre períodos em que participou do colegiado.

Atualmente, o colegiado é formado por três representantes: o ministro da Economia, que preside o conselho, o presidente do BC e o secretário especial de Tesouro e Orçamento. Como o PT já sinalizou que vai dividir a estrutura do Ministérioda Economia, a expectativa de técnicos da pasta é que o CMN volte a ser composto pelo presidente do BC e os ministros da Fazenda e do Planejamento. Mas eles ponderam que é preciso aguardar e que o PT pode inovar e mudar essa composição.

Ex-diretor do BC, o economista Alexandre Schwartsman considera que a gestão das reservas internacionais, que compreendem os ativos do Brasil em moeda estrangeira e são um colchão para o país garantir o pagamento de obrigações no exterior e amortecer choques externos sem sobrecarregar o mercado doméstico, é o ponto mais relevante para marcar a relação entre BC e o novo governo. Entre os problemas, estão o uso das reservas para eventual investimento ou para pagamento de dívidas.

— Embora a legislação atribua este papel ao BC, há exemplos em países vizinhos de uso de reservas para fins fiscais, como na demissão de Martin Redrado do Banco Central argentino, supostamente um presidente com mandato — diz, lembrando que Redrado se recusou a usar parte das reservas para pagar a dívida externa, e a então presidente Cristina Kirchner pediu sua renúncia.

COAF fora do BC

Meirelles, por sua vez, avalia que é fácil para o BC vencer eventual batalha sobre reservas, que estão em US$ 331,5 bilhões, um dos menores patamares da última década — o recorde foi de US$ 388 bilhões em julho de 2019. Nas gestões petistas, o país formou bom colchão de reservas:

— No caso da reserva internacional, não tem muito o que o governo fazer. É decisão de âmbito exclusivo do BC.

Para Schwartsman, evitar conflitos na transição é tarefa do Executivo e não é medida complexa, pois consiste apenas em deixar o BC fazer o próprio trabalho:

— Preferencialmente, o Executivo poderia adotar um conjunto de políticas que auxiliasse o BC no controle da inflação. Para evitar equívocos, penso aqui numa política fiscal congruente com o objetivo do BC, não controle de preços ou barbaridades do gênero, mas se já não fizer barulho, basta.

Em ao menos um ponto o conflito já parece contratado e não será com Haddad, mas com seu futuro colega da Justiça, Flávio Dino. Ele afirmou ao GLOBO que vai retirar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão fundamental no combate ao crime a partir de análises de dados financeiros do BC, para reintegrá-lo, ou à Fazenda, ou à Justiça. Segundo ele, o Coaf deve seguir orientações do governo, e não pode estar em uma instituição autônoma. Na época de sua transferência para o BC, em 2019, Campos Neto defendia que a autonomia do BC aumentaria a blindagem ao conselho.

— Se é controle da atividade financeira, precisa estar com quem cuida da parte financeira, que é o BC— diz Juliana Inhasz, professora do Insper.

No caso do debate da moeda única entre os membros do Mercosul, Lula tem defendido a adoção de uma moeda para os países vizinhos, e chegou a ser defendido pelo atual ministro Paulo Guedes. Mas, a interlocutores, Campos Neto já se mostrou contrário à ideia. Meirelles, por sua vez, vê algo que exigirá negociação:

— A moeda única envolve decisão compartilhada, e certamente o BC dará sua opinião e terá sua participação na discussão, que envolve ainda outros órgãos.

A autonomia do BC, além de não se refletir na questão administrativa — Campos Neto reclama, por exemplo, que depende do Orçamento até para criar um plano de carreiras e salários — não é absoluta. Cabe ao governo indicar diretores: em fevereiro, duas das seis cadeiras ficam vagas, e o presidente da República deve indicar o nome a ser avalizado pelo Senado. No fim do ano, Lula indicará outros dois diretores.

Além disso, novos projetos necessitarão de negociações. A nova lei que cria a regulamentação para as criptomoedas, por exemplo, indica que o executivo vai definir o “xerife” para as transações de bitcoins e afins. Schwartsman avalia que essa função poderia ficar com outro órgão, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM, que controla o mercado de capitais).

As taxas de juros de longo prazo têm potencial para opor BC e PT. Desde 2018, a Taxa de Longo Prazo (TLP), fixada pelas taxas de inflação e de juros de títulos do Tesouro, substituiu a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), definida pelo CMN e, em geral, subsidiada.

Indicado para presidir o BNDES, Aloízio Mercadante deu declarações conflitantes: já criticou a TLP e disse que o banco de fomento não teria postura acanhada, mas disse que os subsídios não voltarão. Já Campos Neto é contrário a qualquer tentativa de subsidiar os juros e defende a TLP.

— Se voltar ao que tínhamos no passado, de subsídios e tudo mais, prejudicaria bastante a política monetária. Se você subsidia crédito de um lado, com taxas de juros formadas administrativamente e não em mercado, esse segmento já não é mais afetado pela política monetária do BC — diz José Júlio Senna, ex-diretor do BC.

“Foi uma ótima conversa. Espero continuar com uma conversa próxima, porque a gente entende que é muito importante ter a coordenação entre a política fiscal e  monetária” - Roberto Campos Neto, presidente do BC

“Foi um almoço muito cordial, ele apresentou o plano do BC já concretizado, perspectivas futuras. Nós vamos procurar alinhar porque o Brasil depende deste entendimento” - Fernando Haddad, futuro ministro da Fazenda