Título: Sebo mal passado
Autor: Sergio Martins
Fonte: Jornal do Brasil, 15/10/2005, Caderno B, p. B3

Livreiros antigos responsabilizam impostos altos e concorrência amadora por crise no comércio de obras usadas

O comércio de livros usados, em lojas ou não, conhecido popularmente como sebo, vive atualmente uma série de dicotomias (ou seriam paradoxos?): lucro, perdas; estabilidade, fechamento de lojas; tradição, aventura; conhecimento, ignorância do valor do livro; segurança, perseguição; raridades ou uma edição recente do Menino Maluquinho. E por aí vai. Em cada canto do Centro da cidade ou nos bairros há um sebo ou uma banca na calçada - algumas estão em universidades, mas a especialização são os livros didáticos ou os selecionados, independentemente do tema, pelos professores para o ano letivo. Há ainda as bancas com permissão para funcionar, outras aguardando o ''alvará'', muitas obrigadas a fechar por causa da Guarda Municipal, e nem sempre de maneira pacífica.

Osmar Müller foi o proprietário de um dos mais tradicionais sebos do Rio, a Livraria Brasileira. Sua loja ficava no Edifício Avenida Central, no coração da cidade, e funcionou por mais de 33 anos. A livraria era um ponto de referência para colecionadores, pesquisadores e pessoas simplesmente interessadas, eventualmente, num determinado livro, ou coleção, muitas dispostas a pagar um preço alto por uma raridade.

- O custo do aluguel, a concorrência das lojas e dos estandes de informática foram a razão principal de eu ter entregue a loja ao condomínio em setembro - afirmou Osmar Müller.

Fechou as portas mas a paixão pelo comércio de livros usados continuou. Tanto é assim que se aposentou (está com 82 anos) mas passou a ser o gerente de um sebo num local bem mais modesto: Avenida Passos, esquina com Luís de Camões, onde ainda recebe alguns de seus clientes mais famosos, entre eles o economista e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa, o procurador da Fazenda Waldir Cordovil e o ministro Moreira Alves, do STF.

Menos famosa, mas freqüentadora assídua dos sebos, a professora de Planejamento Urbano da UFRJ Fania Friedman é sua cliente desde os tempos do Edifício Avenida Central.

- Pesquiso e compro nos sebos há 25 anos. Lamento que os preços, atualmente, estejam bem mais altos. Estou levando um exemplar do livro Brasil, capital Brasília sobre planejamento urbano - contou.

A causa do encarecimento, segundo Osmar, é dos muitos amadores - expressão sua - que decidiram trabalhar com livros usados sem entender do assunto:

- Tanto podem pedir uma fortuna por um livro qualquer, como vender, por um preço muito aquém, um exemplar raro. O que existe hoje em dia é muito palpite. Tenho uma estante só desses livros. Este aqui, por exemplo - disse, mostrando a primeira edição de Nova floresta, do padre Manuel Bernardes, de 1700. - Custa R$ 3 mil. Parece caro, mas o preço é mais do que justo.

A Avenida Passos termina na Praça Tiradentes. Do outro lado da praça, numa loja modesta e repleta de livros, chamada A. Cunha Ltda, trabalha o mais antigo livreiro do Rio, Walter Alves da Cunha, 92 anos. Suas queixas são as mesmas. Para ele, o comércio de livros usados está em crise:

- As pessoas estão sem caixa e as livrarias têm de enfrentar custos altos para sobreviver. Tem muita gente querendo vender mas que não entende do assunto. Com a crise que o país vive, a primeira coisa que a população cancela é a compra de livros. Minha especialização são os livros de direito, mas os advogados de hoje não têm dinheiro. Por sorte existem os clássicos, que sempre encontram comprador.

Walter Alves da Cunha também criticou o alto custo dos aluguéis, das luvas e do IPTU, o que o obrigou a fechar sua loja da Rua da Assembléia, uma das mais valorizadas do Centro.

- Tive um grande prejuízo há pouco mais de três anos. Perdi num incêndio, a meu ver criminoso, mais de 100 mil livros, entre eles a maior biblioteca de filologia do Brasil, com cerca de 20 mil volumes. Meu depósito ficava na Rua Cidade de Lima, perto da Rodoviária Novo Rio. Com a eleição do Lula, o pessoal do governo antigo botou fogo no prédio da Caixa Econômica para sumir com documentos, e o depósito foi junto. Só pode ter sido isso - desconfia.

O livreiro é parte da história do Brasil. E fala disso com muito orgulho. Ele foi contratado pelo governo Juscelino Kubitschek para montar a biblioteca do presidente, no Palácio da Alvorada, em Brasília.

- Foram meses de pesquisa e muito trabalho. Selecionamos mais de 6 mil volumes em 1960 - contou.

No ramo há 78 anos, ele conta com um empregado fiel, Izaltino Carreiro, que trabalha com ele há mais de 50 anos. Foi Izaltino quem mostrou o livro mais raro da loja: Princípios do direito civil romano, editado em francês, em 1776.

- É valioso demais, custa mais de R$ 6 mil. Os colecionadores hoje em dia também são raros - disse Izaltino.

Alheio às dificuldades dos livreiros, Francisco Olivar, com a ajuda da filha Rafaela, montou sua banca, organizada em estantes, junto com outros cinco vendedores individuais, na saída da estação Carioca do Metrô. Enquanto seu ''alvará'' não sai, defende a criação de um lugar específico para abrigar os livreiros de rua, a exemplo do que existe na margem esquerda do Sena, em Paris.

- Já tive alguns livros raros na mão, mas não sabia o valor. Tanto que dei de presente um exemplar da primeira edição de A moreninha, do Joaquim Manuel de Macedo - lamentou.

O corredor de sebos no Centro do Rio começa na Rua da Assembléia, passa pela Rua da Carioca, pela Avenida Passos e muitas de suas transversais. Há ainda bancas de rua na Pedro Lessa, na Praça Sans Peña, na Tijuca, em Botafogo, em Copacabana. Mas podem não estar sempre no mesmo lugar. Vai depender da Guarda Municipal.