Valor Econômico, n. 4959, 13/03/2020. Opinião, p. A11

Coronacrise

Márcio Garcia


A crise mundial deflagrada pela propagação do coronavírus foi turbinada por uma guerra de preços no maior cartel global, o do petróleo. Os mercados ao redor do mundo colapsaram, temendo uma recessão mundial. Promessas de ação governamental e redução de juros por bancos centrais trouxeram pouco alívio. Quais as perspectivas da economia? O que pode ser feito, lá fora e aqui?

Comparação realizada pelo FMI com crises precedentes mostra que as consequências econômicas do coronavírus na China parecem ter afetado o setor industrial de forma tão grave quanto o ocorrido na Grande Crise Financeira Internacional, em 2008. Mas os efeitos no setor de serviços parecem bem maiores, provavelmente devido às restrições atuais a aglomerações (social distancing). As quedas recentemente observadas no custo de frete marítimo não encontram precedente nas epidemias anteriores, nem sequer após o 11 de setembro, refletindo a queda mais acentuada no nível de atividade da crise atual. Ou seja, do ponto de vista econômico, trata-se de crise gravíssima. Muito mais séria do que uma mera marolinha.

Vou me ater aqui aos efeitos da coronacrise sobre a economia. Para isso, convém separá-los entre aqueles que afetam a oferta e os que afetam a demanda.

O lado da oferta de bens e serviços é afetado pela ausência dos trabalhadores doentes (ou mortos), ou que não podem chegar ao trabalho por restrições de quarentena ou de locomoção. A enorme interconexão das atividades produtivas (cadeias mundiais de valor) torna o sistema produtivo muito mais vulnerável a interrupções da produção em lugares-chave, como é o caso da província chinesa de Hubei, grande produtora de componentes eletrônicos e equipamentos.

Já do lado da demanda, há vários fatores contracionistas: as pessoas perdem renda (firmas demitem ou colocam em licença não remunerada), aumenta a aversão ao risco, e impedimentos à circulação ou o temor de pegar a covid-19 reduzem a demanda por diversos serviços como turismo, transporte, restaurantes, etc.

Outro importante fator, afetando tanto a oferta quanto a demanda, é o efeito da crise sobre instituições financeiras. A queda na atividade aumenta o risco de crédito e, consequentemente, os spreads, encarecendo os empréstimos. Juros maiores podem colocar devedores frágeis, tanto firmas quanto famílias, à beira da inadimplência. O aperto das condições financeiras pode agravar a crise substancialmente. O fato de vários países serem afetados simultaneamente piora o quadro.

Mesmo focando só na economia, a saída da crise depende do sucesso em conter a propagação do vírus, o que é um problema de saúde pública. Se faltam componentes, não há políticas macroeconômicas que os possa substituir. Na medida em que a propagação da doença for contida, estímulos fiscais, monetários e políticas financeiras poderão mitigar as perdas. Com todas essas políticas, o problema é semelhante: como fazê-las focalizadas, atingindo o público certo, e restritas à duração da crise? O objetivo fundamental é impedir que uma crise temporária produza efeitos nocivos permanentes, devido à falência de firmas ou à ruína financeira de famílias.

Diversos países já anunciaram medidas fiscais, monetárias e financeiras, como postergação de pagamento de impostos e hipotecas, redução dos juros e novo round de afrouxamento monetário. No Brasil, as restrições de gastos públicos limitam as possibilidades da política fiscal como instrumento de combate à crise, levando analistas a sugerirem a revogação da emenda constitucional do teto de gastos. O que parece desnecessário, uma vez que a emenda constitucional do teto de gastos já abre a possibilidade de créditos extraordinários, em conformidade com o art. 167 da Constituição Federal (“... para atender despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública").

Mexer no teto seria um desastre no longo prazo e também no curto prazo, ao sinalizar para um mercado já em crise a quebra de nosso frágil compromisso com a sustentabilidade da dívida pública. Teria efeito oposto ao que se pretende.

Adiar cobrança de impostos e/ou dar crédito emergencial via bancos públicos até que a crise passe parece ser a linha mais sensata de ação. O BC anunciou que deverá manter intervenções cambiais esporádicas visando dar liquidez nos mercados cambiais, quando necessário. Dados os melhores resultados das intervenções cambiais anteriores, nas quais o BC anunciou um montante expressivo de swaps cambiais, como em agosto de 2013 e maio de 2018, eu preferiria um programa com munição ameaçadora.

De qualquer forma, o volume atual de reservas, ao redor de US$ 350 bilhões, é mais do que suficiente para garantir o bom funcionamento dos mercados. O manejo da taxa de juros exigirá perícia ainda maior, pois há o risco de que as necessárias reduções dos juros para estimular a economia possam ser contraproducentes, se acabarem por tornar as condições financeiras ainda mais apertadas.

O que seria mesmo necessário nesta hora tão grave é comando lúcido e firme por parte do governo, como já tivemos em crises anteriores. Infelizmente, o que vemos é uma briga entre Executivo e Legislativo. Esta disputa extemporânea produziu, na quarta-feira, despesas fiscais substanciais que ameaçam fazer a dívida pública retomar a trajetória explosiva da qual foi retirada pela reforma da previdência e pela queda adicional dos juros que propiciou.

O aumento significativo das taxas de juros, sobretudo as longas, revertendo os ganhos de meses anteriores, sinaliza claramente que não há mais espaço para erros. Convém a todos que os principais atores voltem a conversar e apontem um caminho único. A crise é severa, mas será menos custosa se houver entendimento. Como em qualquer virose, cautela e caldo de galinha só podem ajudar!

Márcio G. P. Garcia, Ph.D. por Stanford, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, Cátedra Vinci Partners, escreve mensalmente neste espaço (sites.google.com/view/mgpgarcia).