Título: Brasil ignora eficácia de investimentos sociais
Autor: Marcelo Kischinhevsky e Rafael Rosas
Fonte: Jornal do Brasil, 27/11/2005, Economia & Negócios, p. A19

James Heckman, 61 anos, é um fã do Brasil. Pesquisador de políticas públicas e estratégias para reduzir a desigualdade, visita o país regularmente desde a década de 80. Foi há exatos cinco anos, durante um seminário na Fundação Getulio Vargas do Rio, que o professor soube que tinha conquistado o Prêmio Nobel de Economia, por seu trabalho na avaliação da eficácia de programas sociais. Semana passada, voltou ao Rio, praticamente incógnito, para mais um evento da FGV e para reunião do conselho internacional da Harris School of Public Policy, da Universidade de Chicago. Entre um evento e outro, conversou com o Jornal do Brasil sobre as recentes mudanças na economia do país. Bem-humorado, Heckman elogiou os avanços sociais brasileiros, mas não hesitou em afirmar que faltam dados para atestar o sucesso de programas como o Fome Zero, principal bandeira da gestão Lula. ¿O país tem economistas, estatísticos e analistas brilhantes, mas eles trabalham com dados insuficientes¿, apontou, afagando os colegas daqui. O economista, contudo, não se furtou a criticar a taxa de juros sem paralelos no mundo e reafirmou sua visão de que o brasileiro sofre de baixa auto-estima. Lembrou ainda que, em Chicago, a profecia-livro do escritor Stefan Zweig, de que o Brasil é o país do futuro, ganhou um acréscimo jocoso ¿ ¿e sempre será¿. A seguir, os principais trechos da entrevista.

- O sr. estava no Brasil discutindo desigualdade social quando foi premiado com o Nobel. De lá para cá, o que mudou no país, em sua avaliação?

- Muita coisa mudou. A economia brasileira não estava em condições tão boas como as de hoje e naquela época a Argentina ainda estava forte. Houve muitos avanços. Sempre se tem a impressão de que o Brasil é um país muito grande e com um grande futuro. Na universidade, colegas brincam que ''o Brasil é o país do futuro, e sempre será''.

- Os programas brasileiros de assistência, como Bolsa Família e Fome Zero, são eficazes?

- Participei de uma conferência na FGV em que o tema foi a pré-escola e os programas para esta fase existentes no Brasil. Discutimos a eficiência de programas de apoio à saúde e à educação infantil e quais as melhores saídas para reduzir a pobreza e os crimes no Brasil. E a conclusão foi de que o país está aquém do que poderia em termos do desenvolvimento de bancos de dados que seriam úteis para informar sobre o avanço destes programas sociais. Nos Estados Unidos, desenvolvemos bancos de dados há muitos anos que deixam claro como os indivíduos estão participando dos programas, quais os efeitos das iniciativas. Também monitoramos as pessoas antes delas entrarem nos programas e acompanhamos o desenvolvimento delas depois que saem, como forma de medir os avanços de longo prazo. No Brasil, nós temos apenas idéias muito vagas. É difícil identificar no país os padrões modernos de metodologia e formação de bancos de dados. O Brasil ainda desperdiça muitos dados. O país tem economistas, estatísticos e analistas brilhantes, mas eles trabalham com dados insuficientes.

- A participação nos programas sociais deve ser condicionada, com exigência de freqüência escolar para os filhos das famílias assistidas, por exemplo?

- Há programas assim nos Estados Unidos e eles são bem-sucedidos. É claro que se consegue uma vantagem muito grande ao se educar as crianças e provê-las com oportunidades de educação. E, certamente, qualquer medida que promova um alcance maior da educação é boa. A idéia de mandar crianças para a escola é sempre boa. Meu questionamento é que deveria haver uma estrutura que incentivasse a criança a ir às aulas de outra maneira. Há dois problemas que precisam ser encarados. O primeiro é que muitas vezes a escola é de baixa qualidade. O outro é em relação às oportunidades econômicas oferecidas às crianças de famílias pobres. Em áreas rurais, as crianças podem ser usadas como mão-de-obra e, em cidades como o Rio de Janeiro, para pedir esmolas. Temos que melhorar a qualidade das escolas e torná-las mais atrativas para as crianças do que as ruas.

- Isto requer iniciativas de longo prazo. O Brasil tem avançado nessa direção?

- O Brasil tem feito um progresso substancial neste sentido. Lembro da primeira vez que estive aqui, nos anos 80, quando o tempo médio de escolaridade era muito baixo. Hoje, o tempo de estudo dos jovens é muito maior. Meu principal questionamento é em relação à qualidade das escolas. E isso nos leva a pensar que tipo de escola queremos e quanto poderíamos gastar com isso. Eu não focaria apenas nos programas sociais.

- O governo brasileiro acredita que o meio mais fácil de levar crianças à escola é utilizando os programas sociais...

- Esta política realmente encoraja a presença nas salas de aula. Não há questionamento sobre isso. Estes programas já funcionaram no México, nos Estados Unidos e em outros países. No Brasil, há um grande problema: não há um número suficiente de crianças nas escolas. Este foi o principal tema da conferência na FGV. Isso foi muito discutido. Os primeiros anos de educação, inclusive o pré-escolar, têm um papel muito importante e a política brasileira para a infância tem sido inadequada, principalmente para as famílias pobres. E este cuidado com as crianças é muito importante para incentivar a ida e a manutenção das crianças nas escolas.

- Os gastos públicos em educação deveriam, então, ser ampliados?

- Não é apenas uma questão de gasto público. Estou pensando também em como o dinheiro é gasto. Este é um ponto muito importante que deveria ser mais discutido no Brasil. Em que estágio na vida da criança você deve intervir? Como a escola deve servir como mecanismo para formar as gerações futuras? O Brasil está muito atrás de outros países, especialmente na atenção à infância, no desenvolvimento de qualificação e na eficiência em mandar as crianças à escola. Uma criança da classe média vai à escola e tem fortes incentivos para tanto. Uma criança pobre não tem. Mesmo que eles acabem em escolas com a mesma qualidade, não vão aprender da mesma forma. Em resumo, toda a política educacional tem que ser repensada.

- No Brasil, uma parte expressiva das despesas do governo se refere às universidades públicas. O sr. considera, então, que o investimento no ensino fundamental deveria ser priorizado?

- O apoio aos primeiros anos deveria ser maior, certamente. Há muitas evidências que apontam para isso. O Brasil tem uma política educacional meio maluca. Muitas crianças precisam de benefícios para ir à escola. Muitos benefícios estão nas universidades, compostas por pessoas que têm boa renda, boa educação básica e um bom nível médio. Essas pessoas poderiam inclusive pagar pela universidade, o que ainda poderia ser uma fonte de recursos para o governo brasileiro. Esse dinheiro poderia ser transferido para fundos que beneficiassem a educação básica para evitar problemas relacionados à educação de pessoas mais pobres, por exemplo. Isso traria um benefício muito maior.

- A educação é a chave para o desenvolvimento?

- Acredito que sim. A educação é a chave. Mas, de modo mais amplo, a qualificação é a grande chave. A educação, no geral, é importante para o desenvolvimento de qualificações. Entendemos que algumas habilidades são determinadas nos primeiros anos, pelo ambiente familiar. Isso fica claro quando analisamos quem vai para a escola e permanece lá, quem comete crimes, por exemplo. Cuba investiu muito em educação e não está tão bem (risos). A Irlanda, por exemplo, é um país muito importante em termos econômicos, apesar de ser muito pequeno. Eles fizeram um trabalho muito bom nos últimos 15 anos. Se você recuar 30 anos, o que a Irlanda fez? Era muito difícil para a população de lá ir à escola. Muitos não chegavam ao secundário, pois tinham que pagar para isso. O país começou, então, a investir pesado para dar à força de trabalho as habilidades e a capacidade para produzir. Ter uma força de trabalho bem educada é um ponto-chave. Em uma das visitas que fiz a Brasília, discuti esta questão. As pessoas diziam que o nível de educação de alguns trabalhadores rurais era tão baixo que impedia a explicação de idéias simples e o uso de ferramentas básicas. Imagine só a possibilidade de usar tecnologias e máquinas mais modernas, computadores... Se o nível de qualificação for muito baixo, isto se transforma em um grande desafio, pois há uma demanda forte por parte de quem oferece os empregos. Na Irlanda, com reformas estruturais que tornaram o ambiente mais propício para negócios, houve um ganho de credibilidade.

- A despeito dos problemas estruturais, o Brasil desfruta hoje de credibilidade?

- Foi surpreendente como surgiu o consenso de todos os partidos políticos pelos atuais princípios econômicos. Acho que o Brasil passou a ter muita credibilidade. O presidente Lula se cercou de bons conselheiros econômicos. Sei que houve uma transição para que estes princípios fossem aceitos, mas a estrutura da economia brasileira melhorou. Todos sabem que não há espaço hoje para aventuras econômicas, como já aconteceu no passado.

- O sr. disse certa vez que o brasileiro tem baixa auto-estima...

- Eu disse isso? (Risos) Bem, o que eu quis dizer é que o Brasil tem economistas brilhantes, como Marcelo Neri e Aloisio Araújo, da FGV, José Scheinkman e outros. E, apesar disso, muitas pessoas que são bastante ignorantes em relação ao Brasil dão opiniões sobre o país que não deveriam ser levadas tão a sério. Por isso disse que o brasileiro tem baixa auto-estima, pois dá ouvidos a autoridades estrangeiras que pouco sabem sobre o país, em vez de ouvir brasileiros muito bons.

- Muitos bons economistas, no Brasil e no exterior, não conseguem entender as taxas de juros do país. O sr. consegue?

- Não. É um problema enorme. Só serve para induzir uma grande entrada de recursos no país, que afeta o câmbio. Todos querem aproveitar juros reais de quase 14% ao ano. Na prática, isso acaba tendo um efeito negativo sobre o comércio exterior, pois torna mais difícil a venda de produtos brasileiros. E tem ainda o efeito perverso de prejudicar o investimento produtivo.

- O que poderia ser feito para mudar essa situação?

- Os juros deveriam cair, e as autoridades poderiam efetuar operações de mercado aberto mais firmes, para influenciar na taxa de câmbio. Muitas pessoas achavam que a eleição de Lula traria instabilidade, mas ele trouxe muita credibilidade para o Brasil nos mercados. Mas ainda há altas taxas de juros e o câmbio está sobrevalorizado. O país terá que resolver isso. Seria eficiente um estímulo maior à economia. Mais incentivos à economia trariam um crescimento maior.

- É uma recomendação pouco usual para um professor da Universidade de Chicago...

- Bem, eu não sou exatamente um neo-keynesiano. Quando falo em estimular a economia, não entendo apenas aumento de gastos públicos. Eu penso também na remoção de obstáculos que tornam os negócios difíceis, como a falta de regulação. Esta melhora estimularia os investimentos por parte do setor privado, criaria um ambiente mais amigável, com mais oportunidades e facilidades para contratar e demitir trabalhadores. Estas propostas são de baixíssimo custo, não mexeriam no orçamento e não causariam déficit. E é verdade que algumas delas teriam um custo político e provavelmente é isto que as emperra. Mas os benefícios seriam um maior crescimento da economia brasileira, com maiores orçamentos para gastos. Eu não estou sugerindo, de maneira alguma, o aumento dos gastos governamentais e o abandono da atual política fiscal, mas acho que alguns incentivos trariam grandes benefícios para a economia.