Título: O menino Jesus de minha aldeia
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 23/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

Num meio dia de Primavera/ Tive um sonho como uma fotografia. / Vi Jesus descer a terra. /¿ / Tinha fugido do céu." É assim que Fernando Pessoa começa o seu poema sobre o Menino Jesus, que convivia com ele na sua aldeia correndo campos e colinas. Tinha fugido do céu. Lá tudo era muito solene e sempre havia o desejo de que ele se tornasse homem e o colocassem numa cruz com uma coroa de espinhos. Eu, também, na minha infância, tive sonhos de ver o Menino Jesus descer em Pinheiro. Ele vinha rodeado de anjos, resplandecente, e se deitava na manjedoura da Igreja de Santo Inácio onde nós íamos beijar-lhe os pés. A lembrança que me ficou foi de um Natal em que chovia a noite inteira. A roupa nova feita para a Missa do Galo tinha seu primeiro desafio. Meus irmãos e eu de mãos dadas e o olhar santo de minha mãe na felicidade de sua fé inabalável.

Tempos da infância onde essa noite era de rezas e na volta da Missa um chocolate leitoso com um pão-de-ló. E era esperar de manhã o que Papai Noel deixara debaixo de nossas redes. Nada de brinquedos eletrônicos nem o colorido dos plásticos. Era um tambor de lata, feito pelo funileiro da cidade, pintado de azul com as bordas amarelas.

O presépio, que todos dizem inventado por São Francisco, o mesmo que tanto gostava dos pássaros, era feito com a plantação de arroz, as sementes colocadas e adubadas desde a Conceição no dia 8 de dezembro. Tudo calculado para que no Natal os brotos de arroz enfeitassem a gruta onde São José, de cajado na mão, olhava a vaquinha, o burro e a estrela do Oriente.

Cada um vai construindo a sua visão desse dia em que nós, cristãos, celebramos a aliança de Deus com os homens. O relato do nascimento do Menino só aparece no Evangelho de São Lucas. São João na beleza de sua concisão diz apenas que o verbo se fez carne. Mateus passa logo para a visita dos Reis guiados pela estrela. Marcos começa com João Batista, aquele que anuncia a vinda do Salvador e mostra a humildade de ser indigno de beijar seus pés. São Lucas descreve a Anunciação, a visita de Maria a Santa Isabel, transcreve o Magnificat, fala do censo romano que coincide com o "completaram-se os dias e ela deu à luz o seu filho primogênito". Depois descreve os pastores e a multidão dos anjos.

Os catadores de erros dizem que Dionysius Exiguus calculou errado o ano do Natal e que o dia 25 de dezembro era o da festa do solstício de inverno. Para mim não tem erro, era mesmo no dia 25 da minha infância, na festa simples da minha aldeia, sem luz, na escuridão das velas, na chuva, entre trovoadas e relâmpagos, que ele chegava, com a festa das pastorinhas e depois, em janeiro, para desfazer o presépio, a queimação das palhinhas. A ladainha em latim, puxada (era assim mesmo que dizíamos) pela Mãe Luiza, que não sabia os seus anos e apenas a lenda afirmava ter sido filha de escravos: "Turris ebúrnea, / Domus áurea¿". E no fim a cantiga de "Queimemos, queimemos, / as nossas palhinhas, / com cravos e rosas, / queimemos a lapinha. / Adeus meu menino, / adeus meu amor. / Até para o ano / se eu vivo for."

Mas o Menino Jesus ainda vem criança brincar na Terra. Quem quiser ver, vá a São Luís e acompanhe a "Natalina da Paixão", cantando "vem, Jesus Cristinho, / vem Jesus Menino". E Ele vem.