Título: Carta ao presidente Evo Morales
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 01/01/2006, Outras Opiniões, p. A7

Minhas congratulações por sua extraordinária eleição para a presidência da República da Bolívia com 54% dos votos do povo do seu país no primeiro turno. Creio que se trata de um evento tão importante para os povos amantes da democracia quanto o foram as históricas eleições de Salvador Allende no Chile, de Nelson Mandela na África do Sul e de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil. Acompanho com atenção seus pronunciamentos a favor da real soberania do povo boliviano, da democracia que faça sentido para todos, especialmente para os que permaneceram esquecidos e não obtiveram seus plenos direitos à cidadania por tanto tempo na história. Considero muito importante sua reivindicação para que a Bolívia se integre o mais rápido possível aos países do Mercosul. Esta integração deve, desde já, considerar a liberdade de movimento não apenas de bens, serviços e capitais, mas, sobretudo dos seres humanos. Se desejarmos uma verdadeira integração, é preciso pensar numa gradual homogeneizição dos direitos sociais nas Américas.

É muito importante também sua defesa de que a Bolívia possa cobrar 50% de impostos ou royalties sobre a exploração de seus recursos naturais, conforme aprovado pelo Congresso boliviano, assegurando assim que toda a população possa participar da riqueza da nação. A respeito desse ponto gostaria de colocar-me à disposição para debater com as autoridades do novo governo e do Congresso nacional boliviano sobre as formas de criação de um Fundo Nacional de Cidadania na Bolívia, que permitirá a todos os cerca de nove milhões de bolivianos receber uma renda básica incondicional.

No Brasil, atualmente, o programa Bolsa-Escola está em intensa expansão. As famílias com renda mensal per capita até R$ 100,00 têm o direito de receber um benefício de R$ 15,00, R$ 30,00 ou R$ 45,00 - dependendo da família ter um, dois, três ou mais filhos até 16 anos - e mais R$ 50,00, se a renda mensal per capita não chegar a R$ 50,00. Como contrapartida, as famílias devem provar que seus meninos e meninas até seis anos estejam tomando as vacinas recomendadas pelo Ministério da Saúde e que as de sete a 16 anos freqüentem a escola.

É relevante que em 8 de janeiro de 2004 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha sancionado a lei 10.835, que institui por etapas, a partir de 2005, uma renda básica de cidadania, começando pelos mais necesitados, até que todos os brasileiros, inclusive os estrangeiros residentes há mais de cinco anos, tenham o direito de recebê-la. Esta renda será paga igualmente a todos em parcelas mensais ou anuais.

A Bolivia está em situação propícia para considerar seriamente a experiencia tão positiva que já existe no Estado do Alasca, nos Estados Unidos. Nos anos 60, o prefeito de Bristol Bay, uma vila de pescadores, percebeu que de lá saía uma grande riqueza na forma da pesca, embora muitos dos seus habitantes permaneciam pobres. Ele propôs então um imposto de 3% sobre a pesca, para criar um fundo que pertenceria a todos. Houve uma enorme resistência. Foram necessários cinco anos para que todos se convencessem. A medida foi tão bem sucedida que dez anos depois ele se tornou o governador do estado. Seu nome era Jay Hammond.

Ainda nos anos 60 o Alasca descobriu que tinha uma enorme reserva petrolífera. Em 1986, o governador disse aos seus 300 mil concidadãos: ''Temos que pensar não somente na nossa geração, mas também na futura. O petróleo, como outros recursos naturais, não são renováveis. Vamos separar 50% dos royalties provenientes da exploração dos recursos naturais para criar um fundo que pertencerá a todos''. A proposta foi aprovada pela Assembléia Legislativa e também por referendo popular. Desde os anos 80 os recursos assim obtidos foram investidos em títulos de renda fixa, ações de empresas do próprio Alasca, dos Estados Unidos e internacionais, além de empreendimentos imobiliários. O valor do Fundo Permanente do Alasca cresceu de um bilhão de dólares em 1980 para US$ 32 bilhões em 2005.

Cada pessoa residente no Alasca há mais de um ano, de qualquer origem, raça, sexo ou idade tem o direito de receber anualmente um dividendo que foi de cerca de US$ 300,00 no início dos anos 80 para US$ 1.963,86 em 2000, e US$ 845,76 em 2005. Nos anos 90 o Alasca distribuiu 6% do seu Produto Interno Bruto a todos os seus habitantes, que são 700 mil atualmente. Como consequência, o Alasca se tornou o mais igualitário de todos os estados norte-americanos. De 1989 a 1999, a renda média das famílias 20% mais ricas dos Estados Unidos cresceu 26%, enquanto a das famílias 20% mais pobres cresceu 12%. No Alasca, no mesmo período, a renda média das famílias 20% mais ricas cresceu 7%, e a das famílias 20% mais pobres aumentou em 28%, ou seja, quatro vezes mais.

Estou certo de que é este o padrão de desenvolvimento que deseja ver na Bolívia, assim como o desejamos no Brasil.