Título: Estradas, buracos e governos
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 17/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

Na primeira visita que fiz aos Estados Unidos, no ano de 1966, debati no Centro Para Estudo da Democracia, em Santa Bárbara, Califórnia, com intelectuais, desde o direitista ao marxista, que discutiam ''como pode uma sociedade justa e livre conviver com as novas condições políticas, sociais e econômicas prevalecentes na segunda metade do século 20''. O Centro tinha mais de 14 mil sócios de todas as tendências, independente de relações com o governo. Por lá haviam passado Gandhi, Mendès France, Lord Russel e N'Krumah, cujas palestras - como de hábito - foram distribuídas depois de impressas em panfletos. O convite fora iniciativa do embaixador Lincoln Gordon (depois que deixei o governo do Pará) ''para conhecer os Estados Unidos de Norte a Sul e de costa a costa''. Foram convidados, com programas diferentes, o saudoso Nelson Marchesan e o competente Arnaldo Prieto, originários do Partido Democrata Cristão, o que mostrava a preocupação do scholar Lincoln Gordon de prestigiar jovens políticos brasileiros comprometidos com os postulados democratas.

Muito lucrei com a viagem, lastimando não ter lido ainda o livro clássico de Tocqueville Democracia na América. Só em Santa Bárbara, na reunião presidida por um aposentado magistrado da Corte Suprema, discorri sobre a situação política do Brasil, e o contra-golpe preventivo de março de 64, ainda recente. Depois de longa exposição sobre os problemas que, a meu ver, tornavam historicamente a democracia instável no Brasil, um dos debatedores me perguntou porque as revoluções da direita não duravam. Respondi-lhe que a nossa contra-Revolução não fora feita para durar, pois o nosso objetivo não era senão preservar o Brasil da expansão do comunismo mundial e logo retomar as liberdades fundamentais democráticas. Não mentia. As guerrilhas comunistas - como disse Prestes - só tiveram um resultado: prolongar o regime autoritário. Não fora por elas, o poder civil teria sido restabelecido muito antes de março de 85.

Embora oficial da reserva, conhecia o ponto de vista do Exército, a decisão de restabelecer a ordem interna democrática, como vieram a proclamar nos seus discursos de posse Costa e Silva e Médici. A indisposição de reconciliar o país eu a testemunhei na Constituinte de 1987. A esquerda deslumbrada pelo êxito do Plano Cruzado, que fez a economista polêmica Maria da Conceição Tavares saudá-lo banhada em lágrimas, dominava o plenário que se negava a entender anistia como esquecimento recíproco. Para nós o plano era visto como estelionato eleitoral, logo depois fracassado Mas na Constituinte reconheci um partido sem nome, porém o mais coeso: o composto pelos economistas. A ideologia não os separava. Votavam junto, José Serra e Delfim Netto, César Maia e Francisco Dornelles, a esquerda e a direita. A Constituição estatizante e xenófoba foi escrita e aplaudida freneticamente. Só não a autografou a bancada do PT chefiada por Lula, acusada de não ser suficientemente esquerdista. O objetivo alegado pelos economistas era extinguir todos as chamadas verbas ''carimbadas'', como a destinada ao DER, fruto do imposto sobre combustíveis. Com isso concordava até Delfim e também Roberto Campos. Deixaria livres - argumentavam - as mãos do presidente da República, para aplicar o Orçamento da União segundo as prioridades que lhe aprouvessem. Vem daí o declínio das rodovias brasileiras, com a exceção das estradas estaduais paulistas. Até o ciclo militar podia-se ir de Belém a Jaguarão, fronteira do Uruguai, rodando sobre asfalto. Só para citar uma rodovia que atravessava o Brasil. A Belém/Brasília, que transformou o Brasil-arquipélago no Brasil continental, integrando a Amazônia à Brasília, graças ao espírito desbravador de Juscelino, fora asfaltada totalmente por Andreazza. Em suma, os transportes terrestres eram excelentes.O orçamento do DER (verba vinculada ou ''carimbada'') era maior que o do MEC, em 1973, exemplificavam os economistas. Extinguiram-se as vinculações e os presidentes ficaram de ''mãos livres.'' Mas as estradas foram abandonadas. Diz-se que, desde FHC, ou antes, e, portanto, não seria culpa só do governo atual. Quem compara com o ciclo militar não tem dúvida de que as rodovias não foram prioridade dos novos governantes, o que se reflete fortemente no ''custo Brasil''. Mas imperdoável é que tenham chegado ao estado em que estão. Se a culpa não cabe só ao tempo do mandato de Lula, como admitir que o PT, que criticava duramente o estado das estradas, haja seguido o mesmo caminho, ainda que com a atenuante de haver passado a responsabilidade aos estados da Federação que, por sinal, afirmam não terem recebido os meios essenciais. Nada me parece justificável ao atual governo só agora ter tomado polêmicas providências - até com o TCU - de imensa operação de ''tapa-buracos'', obra tida como antieconômica e de baixa duração por expertos e como grande chance de engordar os cofres pelos espertos. Pouco importa que o ano seja eleitoral, o que evidentemente está associado às esperanças nas urnas de outubro próximo. O que fica mais que provado é que os transportes terrestres não foram prioridade para o governo hoje, como não o foram antes, a partir da ridícula Nova República. As licitações já foram esquecidas, convenientemente. Os custos, deles se encarregarão as empreiteiras patrióticas e desinteressadas.