Título: A comparação inevitável
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 31/01/2006, Outras Opiniões, p. A15

São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, diz a Constituição, mas os fatos concretos que estão a repetir-se nesta República da estrela vermelha fazem da norma constitucional letra morta. Quando cadete na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, tínhamos uma cadeira de Direito que se limitava a Direito Constitucional, com ênfase em Teoria do Estado, e estranhamente Direito Internacional Público. Estranhamente, digo, porque não estudávamos o Código de Justiça Militar, que nos poderia ser útil logo que, oficiais inferiores, éramos indicados para compor Conselhos de Justiça nas auditorias, como juízes a julgar militares que tivessem cometido crime apurado em Inquérito Policial Militar. Logo na primeira aula de Direito, nosso professor começou ensinando a teoria de Montesquieu da divisão dos três poderes da República. Perguntou: por que devem ser três Poderes? Sem resposta, ele aduziu: se for um só, é ditadura, (sob a qual vivíamos em 1943) e se forem só dois, quem dirime as questões que podem gerar conflito entre eles? Embora vivêssemos na dura ditadura de Getúlio Vargas, estudávamos a Constituição de 1937, e o professor, muito hábil, não se referia aos poderes discricionários do presidente. Quando, nas eleições de 2002, as urnas deram esmagadora vitória ao candidato do PT, temia eu que a carta preparada pelo partido para as eleições, que abandonava o discurso revolucionário do passado, não passasse de uma forma de desensibilizar a classe média. Foi infundada e preconceituosa a minha apreensão. Lula soube livrar-se do esquerdismo. Não foi apenas Lênin que escreveu sobre ''a doença infantil do esquerdismo'', mal começava o século 20. Luiz Carlos Prestes, em um de seus livros ditados ao ''camarada'' Dênis de Moraes, conta que na aliança que fizera com Jango, certamente buscando realizar o socialismo com o apoio da burguesia esclarecida, dizia só não gostar quando Prestes mandava ouvir, sobre uma proposta do PCB, Darcy Ribeiro, ''porque Darcy era muito à esquerda''. Maurice Duverger, o grande intelectual socialista francês, viria a repetir a influência negativa do esquerdismo, dizendo que ''em pequena dose, o esquerdismo é o sal do socialismo. Em dose forte, vem a se tornar um veneno mortal''. O presidente Lula se deu conta do perigo do veneno e por isso livrou-se de boa parte do esquerdismo, a dos quatro petistas expulsos do PT enquanto mantinha calados outros esquerdistas aos quais era não recomendável prescrever o antídoto Heloísa Helena. Pouco depois de aprovar as reformas constitucionais - a da Previdência, principalmente - Lula enfrentou indisciplina do PT e perdeu apoio de sindicatos, como o dos funcionários públicos. Receia o mestre socialista que o esquerdismo, possa levar a vitória a servir à direita, exatamente do que o esquerdismo mundial no Fórum de Caracas tem acusado Lula. Defendendo-se, aproveitou-se o presidente, em visita ao Rio de Janeiro, onde o sul da cidade é mais habitado por abastados que o norte: ''Não tenho cara do sul''. Só que no sul carioca, nas praias de Copacabana e Ipanema e na avenida Vieira Souto, Lula tem admiradores, especialmente aqueles que, parodiando Marx, Raymond Aron os definiu em O ópio dos intelectuais.

O seu relacionamento com a Suprema Corte, inicialmente atritado pela referência do presidente à ''caixa preta'' do Judiciário, tornou-se cooperador. À bancada do PT, de 91 deputados, agregaram virtuosos novos aliados. Formaram ampla base governista no Legislativo domado. Mas o poder, como ensina Loewenstein, é demoníaco. O poder não basta ao presidente Lula. Os presidentes do ciclo militar, Médici e Geisel, respeitaram, em pleno AI-5, o direito da oposição ao criar CPIs. Geisel tinha aprovado no Congresso o Acordo Nuclear Brasil/Alemanha. Publicou um Livro Branco em que se afirmava ser a energia nuclear, segundo relatório da Eletrobrás, a única solução para evitar que nos anos 90 o Brasil tivesse demanda contida de eletricidade primária. Por que com a Alemanha? Porque a fórmula não nos dariam os países do Clube Atômico, para construir usinas nucleares. Tudo fizeram para impedir o Acordo. No dia seguinte à posse do presidente Carter, este enviou o seu vice-presidente Walter Mondale à Alemanha Federal com a missão de obter a denúncia unilateral do Acordo com o Brasil. A Alemanha manteve-se irredutível, mas não podia atender o Brasil senão num projeto - jett nozle - ainda em experimento. Presidente da Comissão de Energia no Senado, tomei conhecimento de críticas severas da comunidade científica ao Acordo. Criamos a CPI no Senado. Fui eleito o relator e Itamar Franco o presidente. Geisel não fez a menor pressão junto ao relator ou aos membros governistas da CPI e o Acordo acabou fenecendo. Isso era a direita no poder. O governo de esquerda de hoje, convoca o presidente da CPMI dos Correios, senador Delcídio Amaral, como se fosse seu vassalo, para exigir do relator Osmar Serraglio que não lhe cite o nome no fato concreto que o Brasil inteiro sabe. Roberto Jefferson disse (a ele presidente) que havia o mensalão no que teima em desmentir até hoje. Por isso abusivamente exige que o relator não faça referência à verdade. A isso se chama de governo da esquerda, onde manda quem não pode, mas quem tem juízo obedece.