Título: O Brasil, a Vale e o gigante da Índia
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2006, Economia & Negócios, p. A20

Na presidência do BNDES, por força do ofício, conheci de perto a estratégia da Vale do Rio Doce, empresa que, em conjunto com a Rio Tinto e a BHP Billington, domina a produção e comércio mundial de minério de ferro. A Vale, com os dois distritos minerais brasileiros e corretas estruturas logísticas, está excepcionalmente bem situada. Historicamente, havia assumido participações acionárias em siderúrgicas ¿ notadamente na CST, talvez a mais eficiente produtora de semi-acabados do mundo. A orientação estratégica da Vale foi concentrar atenção na mineração e retirar-se de participações na cadeia metalúrgica. Por esta diretiva, cedeu ações da CST para a Arcelor ¿ a meu juízo, um grande erro. Para o BNDES, não era de interesse nacional que a Arcelor operasse a produção de semi-acabados no Brasil, pois sempre haveria o risco de fazer da usina brasileira um puro centro de custos e transferir rentabilidade para suas usinas de produtos finais, nos mercados europeus. Na ocasião, exigimos e obtivemos uma carta da Arcelor declarando que não pretendia converter o Brasil em centro de custos. Pretendíamos, pelo BNDES, retomar a orientação estratégica desenvolvida pelos técnicos brasileiros da antiga Siderbrás, que afirmavam ser o controle do mercado final de produtos siderúrgicos o filé da atividade. O Grupo Gerdau seguiu tal orientação. A CSN, privatizada, pretende implementá-la.

Em matéria siderúrgica, o governo FHC fez tudo errado. Ao invés de dar origem a um gigante siderúrgico brasileiro, fragmentou o setor. Desde então, o Brasil permanece na contramão: em nível mundial, tudo evolui de forma contrária. A Kawasaki absorveu a Nippon Steel e desta fusão surgiu o segundo maior produtor mundial. A Thyssen se fundiu à Krupp; a Alcan se uniu à Pechyney, Alusuisse e Lonza; a Alcoa absorveu a Reynolds Metals; a Arcelor, a Dofasco. A Mittal, após aquisição da International Steel Group, dos EUA, completou a história de aquisição e recuperação de companhias siderúrgicas pelo mundo. Ocupa posição com o prático controle de mercado de produtos siderúrgicos em 14 países. É o maior grupo siderúrgico do mundo.

Agora, a Mittal lançou a proposta de absorver a Arcelor. Se o fizer, passará a ter a principal fatia do mercado europeu, e colocará um pé definitivo no Brasil e na Argentina. Se lograr assumir o controle da empresa, terá capacidade de produção de 115 milhões de toneladas/ano. As vendas anuais serão de US$ 70 bilhões.

Provavelmente, haverá um conflito nas Bolsas, pois 86,5% do capital da Arcelor está pulverizado pelos mercados europeus. Pelo contrário, o bilionário hindu Lakshmi Mittal detém, com sua família, mais de 50% do capital de sua empresa. Todos os especialistas prognosticam uma onda de fusões, finda a qual haverá poucos grupos mundiais. Este é um quadro inquietante para Luxemburgo, França e dezenas de milhares de acionistas europeus. A oferta de Mittal foi rejeitada.

Já no Brasil, o ¿mercado¿ festejou a alta especulativa da ações da Acesita, CSN, Gerdau e Usiminas. Pensam que agora as relativamente pequenas siderúrgicas brasileiras serão presa fácil para o colosso hindu, e que estão surgindo ¿ótimas¿ frentes de jogos especulativos. No Brasil, o gigante controlará a CST, a Acesita, a Belgo-Mineira e a Vega do Brasil. A Vale do Rio Doce deve estar inquieta com tal apetite. Não sei, pois não tenho nenhum canal preferencial de acesso ao que pensa o Conselho da Vale. O que se sabe é que a siderurgia brasileira permanece insulada nas fatias servidas pela privatização tucana.

Por outro lado, se o atual governo pensar estrategicamente em relação ao futuro, seria hora de explicitar uma diretriz estratégica: os principais grupos siderúrgicos brasileiros deveriam se fundir. O correto seria convocar a Vale do Rio Doce para realizar este processo. Pode ser, talvez, um exercício futurológico ¿ mas alguns grandes grupos asiáticos, como Posco, Baosteel e as japonesas JFE e Nippon poderão ser convocadas para participar. Devem estar preocupados com a fusão Mittal-Arcelor.

O BNDES bem poderia ser acionado como parceiro estratégico. Os grandes projetos siderúrgicos em Itaqui, Fortaleza e Itaguaí deveriam ter forte participação do banco e da CVRD. No resto do mundo, a Vale do Rio Doce poderia atuar, pensando a siderurgia brasileira como um todo. Neste nível, a mineração de carvão em Moçambique e Venezuela é essencial a um projeto brasileiro de contraponto ao gigante hindu. Desde logo, seria bom que a CVRD se concentrasse em viabilizar as jazidas do Grande Carajás, em vez de querer se converter em uma empresa mundial desligada do projeto nacional brasileiro.

Se para o Brasil como um todo é momento de alto risco e oportunidade, o Rio de Janeiro deve redobrar a atenção para não perder o que se conseguiu, localmente, avançar no setor. E não foi pouco, em meio à estagnação geral da economia: a partir do Porto de Sepetiba e na região de Itaguaí, além de um projeto da Vale-Thyssen e da ampliação da Cosigua, já está pensada a CSN II.

É de interesse estratégico para o Estado do Rio de Janeiro que a indústria mecânica e a metalurgia fina no médio Paraíba se desenvolva, com seus desdobramentos positivos regionais e nacionais. Sem dúvida, eis uma matéria para a nação e para a comunidade fluminense: caso o Brasil fique secundarizado no grande jogo siderúrgico mundial, amargaremos uma inevitável perda de autonomia e capacidade de estimular o desenvolvimento industrial no estado que abriga fração tão expressiva da siderurgia brasileira.