Título: O Haiti dos haitianos
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 19/02/2006, Outras Opiniões, p. A11

Foi uma decisão de bom senso: o Conselho Eleitoral do Haiti declarou, na madrugada de ante-ontem, que René Préval é o novo presidente do Haiti. As nossas esperanças são de que consiga ajudar a tirar seu país da pobreza extrema, assim como trazer a paz entre os haitianos.

René Préval teve 48,7% dos votos nas eleições do dia sete deste mês. Esteve, portanto, muito próximo de alcançar os 50% exigidos para não ir para o segundo turno. A questão que levou aos protestos violentos e deixaram o mundo apreensivo, era a desconfiança de fraude e a exigência que Préval fosse declarado vitorioso. Havia também a questão sobre os votos em branco. Deveriam ser anulados ou distribuídos entre os candidatos proporcionalmente? A segunda opção, mais democrática, foi a escolhida. Préval ficou, assim, com 51,15 % dos votos. Esse método é usado em muitos países democráticos, como a Bélgica, lembrada pelos membros do Conselho Eleitoral, onde a medida teve voto favorável de oito dos nove conselheiros. E a violência das ruas de Porto Príncipe, que foram notícias diárias nesta última semana, se transformou em alegria dos partidários de Préval, apesar dos protestos do segundo e terceiro colocados.

Haiti quer dizer terra montanhosa. Divide a ilha Hispaniola com a República Dominicana. Ali foi descoberta a América. Colonizado inicialmente pela Espanha, que explorou as minas de ouro da ilha até esgotá-las, o Haiti foi entregue à França no século XVII. Era considerada uma das mais ricas colônias americanas. O ciclo do ouro deu lugar ao da cana-de-açúcar e ao do café. Os escravos africanos se tornaram a imensa maioria da população. Em 1791 começou a revolta dos escravos, a primeira nas Américas, vitoriosa em 1804, com a independência e o fim da escravidão. O Haiti foi a primeira república livre e negra do mundo.

Mas como é que o Haiti se transformou no país mais pobre da América? Uma série de crises econômicas e políticas explica isso. Sua localização estratégica levou à ocupação, pelos Estados Unidos, de 1915 a 1934. Vieram também os golpes militares. O pior de todos foi o de 1957, quando François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, tomou o poder apoiado pelos americanos e instalou um regime de terror e corrupção. Em 1971, seu filho Jean Claude, o Baby Doc, ''herdou'' o governo e prosseguiu na política do pai. Foi deposto em 1986.

A esperança veio com a eleição do padre Jean Baptiste Aristide, em 1991. Mas um ano depois Aristide foi deposto pelo general Raoul Cedras, que formou um governo militar. Em julho de 1994 a Organização das Nações Unidas autorizou o envio de uma força de paz, liderada pelos Estados Unidos e Canadá. Três meses depois, em 18 de outubro, o presidente Aristide foi reconduzido à presidência. Entre outras coisas, dissolveu o exército e criou uma polícia nacional. Criou escolas, tentou incentivar a indústria, mas a herança do segundo país mais pobre do mundo era pesada. O desemprego chegando a 65% , mais de 80% da população abaixo da linha de pobreza, devastação ambiental e a terrível porcentagem de doentes de Aids, fora as endemias próprias da subnutrição. Em 2004 foi novamente deposto. Diante de uma quase guerra civil, entrou a força de paz da ONU, chefiada pelo Brasil.

O especialista em Relações Internacionais enviado pelo Brasil como observador das eleições da semana retrasada, Ricardo Senteinfus, disse que a melhor parte dessa eleição foi a alto comparecimento do povo haitiano às urnas. Ele considera a medida encontrada pelo Colégio Eleitoral positiva. Na próxima semana ele falará na Comissão de Relações Exteriores do Senado sobre o Haiti.

O senador Saturnino Braga, atual presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado Federal, também esteve lá. Considera a atual missão de paz um ato de solidariedade entre os povos. Conta que viu um país com apenas quatro horas diárias de energia elétrica, sem serviço de saúde ou saneamento. Ele garante que o Brasil tem o reconhecimento do povo haitiano. Em agosto de 2004, quando acompanhei o presidente Lula na viagem que fez para assistir ao jogo amistoso entre a seleção brasileira e a haitiana também pude constatar o quanto os soldados brasileiros são benquistos naquele país.

O deputado Fernando Gabeira (PV/RJ) e a deputada Maninha (PSOL/DF), que também fizeram parte da delegação brasileira, têm uma posição crítica em relação à presença militar brasileira no Haiti. Mas Gabeira disse que não poderia deixar de votar no envio de R$ 132 milhões para a tropa brasileira, já que os soldados estão lá em situação delicada. Pediu uma reflexão sobre isso e uma saída para a situação.

Um ponto positivo para o presidente eleito, René Preval, é a sua pré-disposição em dialogar com os candidatos derrotados em busca da pacificação do país. Isso é muito importante, tendo em vista que ainda falta o segundo turno para senador e deputado. Esse resultado terá grande influência na escolha do futuro primeiro ministro e na sustentação do governo.

Préval visitará o Brasil antes de sua posse, em 29 de março. Para que ele possa ser bem sucedido em consolidar a democracia e a paz entre os haitianos, é importante que possa instituir instrumentos de política compatíveis com a efetiva realização da justiça. Dentre esses a instituição de uma Renda Básica de Cidadania.