Título: De ser ou não ser esquerda
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 28/02/2006, Outras Opiniões, p. A9

Toda a área ideológica que não é de esquerda, sinceramente ou não, depois do golpe de Estado preventivo de 64, ''matriculou-se'' - como dizia sarcasticamente o presidente Castello Branco - na Arena. Ao fim do ciclo militar, muitos se passaram para o PMDB. Lembro-me bem de que, tendo sido líder do presidente Figueiredo, éramos no Senado 41 arenistas e 20 emedebistas. Os militares esbanjavam prestígio e já na inatividade eram buscados intensamente para ocupar postos de administração não só pública, mas também privada. Estive um quadriênio fora do Senado e não cairei na bobagem de dizer que eu fora a confirmação de que, em política, a criatura freqüentemente se volta contra o criador. É regra geral, com as famosas exceções honrosas, raras, por sinal. Ao voltar ao Senado, visitei, a convite, o gabinete do líder do PMDB. Na parede, estavam retratos de sua bancada. Lobriguei vários que tinham sido meus liderados em 1979/80, muitos dos quais se diziam ardorosos arenistas. Evoluíram. Fui parte dos remanescentes do PDS e a mim coube saudar o senador Fernando Henrique Cardoso, na escadaria interna do Palácio da Alvorada, para levar-lhe a nossa solidariedade. Antigo braço político dos governos dos generais, o PDS marchava para um homem de esquerda moderada, como forma de evitar a vitória de Lula, então venerador de Fidel Castro. Fernando Henrique ainda não havia pedido - se é que realmente pediu - que esquecêssemos o que havia escrito, mas insista em ''que o mundo mudou''. Poucos, aliás, terão lido a sua teoria da dependência, fiel ao pensamento de Marx, que teve a acolhida da esquerda intelectualizada dos tempos em que ele era assistente do mestre Florestan Fernandes, coerente marxista, que veio do segmento pobre da sociedade e, venceu pelo talento. Convivi, sem intimidade, com o deputado Florestan, na Constituinte e lhe admirava a conduta reservada. Certa vez acabara eu de deixar a tribuna, onde me referira às duas éticas de Max Weber: a da convicção e a da responsabilidade, quando ele me abordou, delicadamente, revelando uma surpresa de me ver citar Weber. Provoquei-o pretendendo Weber superior a Marx. Nunca mudou nem me mudou, mas me deu seu livro A Constituição inacabada com uma dedicatória que não resisto à tentação de citá-la: '' Para o ilustre senador Jarbas Passarinho, que combina tão bem a alta cultura, com a ironia e a paixão política, com a consideração intelectual que merece''. Tivemos alguns encontros sempre no plenário da Câmara. Certa feita, voltei a falar-lhe de minha admiração por Weber. Acabara de ler o livro de bolso Le savant et le politique (de que não havia tradução no vernáculo) em que Weber discorda de o professor fazer em suas aulas a sua profissão de fé ideológica, porque ''num anfiteatro o professor tem a palavra, mas os estudantes são condenados ao silêncio''. Respondeu-me que não se aproveitava da platéia cativa. Preferia professores, com quem dissertava sobre Marx. Eis como se pode ser civilizado e até ser cortês defendendo pensamentos conflitantes.

Ora, Fernando Henrique, Presidente da República, sempre se disse, homem de esquerda, mas seu governo foi social-democrata, uma esquerda light, posto que o nome do partido lembrasse Lênin, que o presidiu antes da Revolução de 17. Acusou-o, o PT, de neoliberal. Injustamente.

Temos, agora, um governo cujo ministério tem guerrilheira comunista no passado, a quem José Dirceu saudou como ''camaradas de armas'', com a diferença de que a ministra realmente o foi, enquanto Dirceu no máximo era da agit-prop do PCB (agitação e propaganda) liderando o Movimento Estudantil em São Paulo. Só terá conhecido arma nos treinamentos em Cuba, para a guerrilha, que não o empolgava. Voltando ao Brasil, talvez tenha preferido atuar no campo da informação. A par de ex- guerrilheiros, o enorme ministério de Lula tem ex-Trotskistas e conservadores que fariam inveja ao Partido Republicano norte-americano. E, até mesmo, um presidente do Banco Central que presidiu o Banco Boston. Define-se, porém, o Presidente como torneiro mecânico, quando lhe perguntam o que pensa ideologicamente. Enganaram-se os que sabem que torneiro mecânico como profissão já cedeu ligar ao robô, gerando desemprego estrutural.na indústria. Na política, nada significa, exceto um governo para o qual os grandes banqueiros têm a obrigação de agradecer mais que qualquer outra profissão, pois a mídia informa ''que em 3 anos desse governo os bancos lucraram mais que nos oito anos de Fernando Henrique''. Isso explica, talvez, o incômodo que acabou por provocar um pequeno cisma no PT, de onde foram expulsos os socialistas mais rebeldes e, para o partido que fundaram, foram depois os autênticos socialistas de diversos matizes, parte dos quais fundou o próprio PT. Buscaram refazer suas esperanças no PSOL, liderados pela senadora Heloísa Helena, e sempre criticaram a política econômica do governo.