Título: Chegou o A319
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 14/01/2005, Opiniões, p. A11

O avião não é do Lula, é do povo brasileiro, patrimônio do país. Amanhã, como eu hoje, Lula estará na fila da Ponte Aérea e o Airbus 319 estará servindo a outros presidentes

Em 1956, Juscelino comprou um avião para o transportar nas suas andanças. Eu era da gloriosa UDN, que combatia ferozmente o governo. Milton Campos contava que foi abordado por uma senhora já idosa: ¿O Senhor não é o Milton Campos?¿ ¿Sim senhora.¿ ¿Pois eu, dr. Milton, sou da UDN roxa. Da nossa UDN da calúnia¿. Milton sorriu e disse: ¿persevere¿. Desencadeamos uma campanha danada contra essa compra. Era um Viscount, turbo hélice, que surgira como grande avanço aeronáutico. Voava mais alto, mais seguro e pressurizado. Aposentava o velho DC3, que vinha do início da Segunda Guerra, máquina que voava baixo, até 10.000 pés (hoje os aviões voam a 55.000 pés), sem radar e enfrentando qualquer tempo. Nenhum argumento racional nos fazia recuar. Nada de segurança do presidente, da necessidade de dar a JK melhores condições de fiscalizar as obras de Brasília. Com avião novo, Juscelino vivia no ar. Surgiu uma marchinha, depois do Viscount, que dizia: ¿Agora eu sei / porque o Nonô / nenhum momento deixou de voar ¿¿ Quando assumi o governo, em 1985, o Viscount do Juscelino ainda era o avião reserva do presidente. Quando eu fui a Lisboa, Ulisses ¿ presidente interino ¿ ficou viajando nele, logo depois aposentado.

Em 1988, a Varig vendeu seus 707 com 25 anos de vôos internacionais. A FAB comprou cinco, para abastecer nossos caças em pleno vôo. Recauchutamos dois para servir à presidência. Neles viajei para China, Rússia, Portugal, França, Estados Unidos e outros países. Atravessando o Pacífico ¿ etapa de onze horas ¿, disse-me o Brigadeiro Murilo Santos, um dos grandes nomes da FAB: ¿Presidente, nós aqui, batendo as asas neste velho avião e os tubarões lá em baixo, de boca aberta. Esta se chama `a rota do tubarão feliz¿.¿ Em Moscou, quando voltávamos, já com as despedidas feitas, o nosso Sucatão não suportou o frio e congelou não sei o quê, atrasando quatro horas, para desespero dos russos, obrigados a ficar ali no aeroporto. Outra vez, íamos ao enterro do Imperador Hiroíto. Despedidas feitas na Base Aérea de Brasília, entrei no avião e começou uma fumaceira louca. É que ele estava vazando óleo em cima das tubulações de gases quentes. Foi um corre-corre, tivemos de tomar outro avião para nos levar a Tóquio.

O Brasil é um país austero. Quem viaja oficialmente e é recebido em outros países pode verificar a modéstia dos nossos palácios, a dieta franciscana das nossas recepções e a simplicidade das cerimônias oficiais. Que seja assim mesmo, mas não podemos chegar ao exagero de querer que o Brasil, com um PIB de R$ 1,8 trilhão, passe pela vergonha de dizer que não tem condições de adquirir um avião para sua Força Aérea, que tem a obrigação de transportar o presidente em segurança e lhe dar dignidade no mundo inteiro.

O avião não é do Lula, é do povo brasileiro, patrimônio do país. Amanhã, como eu hoje, Lula estará na fila da Ponte Aérea e o Airbus 319 estará servindo a outros presidentes.

O que eu acho escandaloso é a hipoteca, que o Lula herdou, do Brasil pagar todo ano R$ 300 bilhões de juros da dívida.

Quando uma mulher bonita aparece, esbelta, nos seus trinques, juventude, etc., dizemos: ¿é um avião¿. Outro dia, com um amigo meu, falamos de uma das musas da nossa juventude. Disse-me: ¿Está um sucatão.¿

Juscelino e Lula criticados por um avião novo.

Como critiquei o Viscount, sei que a paixão política não muda. Mudei eu que já estou um ¿sucatão¿. Ainda bem, voando.