Título: Anarquista, graças a Deus
Autor: Maciel, Marco
Fonte: Jornal do Brasil, 08/06/2008, Opinião, p. A11

O Nordeste e o Brasil estão de luto, pois faleceu Zélia Gattai, viúva de Jorge Amado, escritora e acadêmica de mérito próprio.

Paulista de nascimento, filha de pai e mãe italianos, Zélia Gattai era, porém, brasileiríssima de Salvador, da Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados, como Gilberto Freyre disse, em um de seus raros poemas.

Atribui-se a um baiano o papel de cupido do casal Zélia e Jorge Amado. Segundo registra o Jornal do Brasil, a pedido de Jorge Amado, o compositor Dorival Caymmi cantara para Zélia a canção Acontece que eu sou baiano: Há tanta mulher no mundo,/ só não casa quem não quer./ Por que é que eu vim de longe/ pra gostar dessa mulher?

A morte de Zélia ocorreu quase sete anos após o desaparecimento de Jorge. Viveram juntos 56 anos. Viram os pais enfrentarem a dura vida de imigrantes, chegando despossuídos de tudo, sobretudo ela, exceto no amor à família e aos seus ideais.

Zélia Gattai começara a vida intelectual como jornalista em São Paulo, quando conheceu Jorge Amado, que se iniciava na arte do romancismo. Casaram-se e juntos enfrentaram longos exílios. Ele, internacionalmente laureado; ela, fiel companheira, a cultivar o talento de escritora para livros futuros. Depois, ambos reconheceriam, em entrevistas à imprensa e à televisão, que foi necessária a insistência de Jorge para Zélia assumir sua própria vocação.

Tinham opiniões políticas muito fortes, sem perder a ternura. Daí o primeiro livro de Zélia, Anarquistas, graças a Deus. Fruto de indignação social e cariz humanístico obteve êxito imediato, traduzido em muitas línguas, tantas quanto a obra de seu marido.

Tornou-se escritora de pleno direito. Sua obra ingressou nas letras maiúsculas da literatura brasileira e ela passou a receber convites pessoais para conferências e homenagens de muitos países.

Após o falecimento de Jorge Amado, Zélia Gattai foi praticamente aclamada para sucedê-lo na mesma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Fato extremamente raro, todo o Brasil acompanhou a decisão.

Os triunfos literários, porém, nunca tornaram orgulhosos os Amado. As memórias que Jorge não quis fazer, Zélia as realizou. Empreendeu um círculo memorialista-cosmopolita pelas inúmeras viagens do casal; porém, permaneceu fiel à Bahia adotiva, calorosamente acrescentada ao seu São Paulo natal. Nisso se assemelha às recordações intelectuais sergipanas e recifenses de Gilberto Amado, diplomata de carreira. Embora radicado no Rio de Janeiro, ele, sergipano, produziu algumas de suas obras no Recife.

A literatura brasileira não costumava cultivar o memorialismo. A extensa obra de Zélia Gattai nesse gênero é uma de nossas brilhantes exceções. Antes, somente Gilberto Amado e Pedro Nava tentaram-no e conseguiram, cada qual a sua maneira. Hoje, contudo, esse gênero vem sendo mais incursionado, o que ajuda a definir nossa identidade de país marcado por enorme diversidade.

Convivi com Zélia Gattai na Academia Brasileira de Letras. Antes conhecera Jorge Amado. Residente em Salvador, ela vinha ao Rio sempre que podia. Mesmo com a idade e com a enfermidade, que aumentavam, ela nunca perdia o tranqüilo senso de humor, em nada diminuindo a firmeza afirmativa do seu caráter.

Zélia Gattai lega a todos nós uma mensagem de humanismo, confraternização das regiões do Brasil e dos povos de todo o mundo, acima de nossas fronteiras. Muito do memorialismo que escreveu foi em nações distantes, tornadas próximas pelo calor do coração com a luz da inteligência. Tinha sentimentos, porém não ressentimentos. Jamais escreveu uma palavra amarga, apesar das agruras que passou nos exílios. É essa mulher forte que comemoramos não na morte, e sim na vida de exemplo que nos transmitiu. Enfim, como diz um provérbio latino, eheu! fugaces labuntur anni, ou seja, "ai de nós, fugazes desaparecem os anos".