Título: O tiro no pé de Mercadante
Autor: Victer, Wagner Granja
Fonte: Jornal do Brasil, 17/08/2008, Economia, p. E3

EX-SECRETÁRIO DE ENERGIA, INDÚSTRIA NAVAL E PETRÓLEO DO RIO

Tenho a maior admiração pelo senador Aloizio Mercadante. Tem excelente formação técnica, atuação ilibada na vida pública e sempre foi um parlamentar extremamente aguerrido. Ouso dizer que se seu mandato eletivo fosse por nosso Estado seria merecedor, permanente, de meu voto consciente. Apesar de todas estas virtudes, a bandeira que recentemente o ilustre senador abraçou, voltada para uma nova distribuição de royalties de petróleo no país, carece de qualquer substância técnica, razoabilidade e transparece que foi motivada por interesses políticos locais e com único intuito de satisfazer demandas sensacionalistas para a mídia de sua base eleitoral. Tal movimento se caracteriza como sendo político quando se observa que este se acelerou, em muito, no momento em que aconteceram as primeiras grandes descobertas na Bacia de Santos, quer seja em sua camada tradicional, nos diversos campos do Bloco BS-500, e posteriormente na chamada camada do pré-sal, especificamente nos campos de Tupi e Júpiter, que apesar de serem nesta Bacia Sedimentar com nome paulista estavam localizados integralmente no litoral fluminense. Coube, porém o destino e à própria geologia pregar uma grande peça política ao senador Mercadante. Afinal após bradar teses, mesmo sem apresentar projetos formais e consistentes para uma nova distribuição de royalties no país, a partir da mudança dos atuais critérios para outros baseados em uma partilha geográfica não direta, ou por critérios sócio econômicos, ou até para a criação de um chamado "fundo soberano" (que não é incompatível com a atual distribuição legal), ele compromete definitivamente a arrecadação futura do Estado de São Paulo e de todos os municípios do seu litoral, inclusive a da bela cidade de Santos, já que as novas descobertas e possivelmente as mais promissoras em reservas na camada do pré-sal da Bacia de Santos, e agora com nomes não tão bandeirantes, como Carioca, Guará, Bentevi e Caramba, estão integralmente no litoral do Estado de São Paulo. Tal situação pode ser claramente observada ao laudo que pedi às equipes do nosso Departamento de Recursos Minerais do Estado (DRM-RJ), com ferramentas de Georreferenciamento que desenvolvemos quando eu era o secretário responsável pela pasta do setor. Ou seja, a partir da luta empreendida pelo senador, estas novas, últimas e maiores descobertas no pré-sal, que iriam futuramente irrigar cofres do Estado e municípios de São Paulo, é imposto o grande risco da migração destas participações financeiras e royalties para outras aplicações e locais diferentes dos cofres do Estado e dos municípios de São Paulo e que não estão previstas na legislação original e consagrada.

ICMS

Mas, por que isso pode acontecer? Bem, sempre que tratamos qualquer legislação com uma visão oportunista, momentânea e sem os devidos aprofundamentos técnicos, ficamos reféns de tais situações do destino. Ressalta-se que para este mesmo destino, em situação semelhante no tocante a impactos financeiros regionais, não foi tentada a modificação e não houve o mesmo vigor de combate pelo ilustre parlamentar, quando a legislação elaborada, Artigo 155, na Constituição Federal de 1988, diante da limitada produção de petróleo nacional, na ocasião, trouxe prejuízos ao Estado do Rio de Janeiro. Tal dispositivo constitucional, desde então, prejudicou o Estado, sangrando dezenas de bilhões de reais de seus cofres pelo tratamento diferenciado deste produto devido a não incidência de ICMS na origem e na cadeia produtiva da indústria de extração petrolífera, onde o Rio era majoritário, até a chamada fase de refino, onde São Paulo tinha posição majoritária. É bom registrar que esta sangria superou em muito o que o próprio Estado do Rio arrecadou em royalties no período. Vale também dizer que a legislação e a percepção de que royalties são receitas originais de Estados e municípios, sendo uma forma indenizatória pelo impacto na exploração e extinção de seus recursos não renováveis, acompanha a nossa própria Petrobras desde a sua criação. Na ocasião o substitutivo do deputado Euzébio Rocha, que originou a famosa Lei 2004 de 03 de outubro de 1953, sancionada por Getúlio Vargas e que criou a estatal, já consagrava no Artigo 27 o pagamento de royalties, e determinava 4% aos Estados e 1% para os municípios sobre o valor da produção terrestre. Muitos anos depois da criação da Petrobras, e praticamente após uma década da produção do petróleo offshore com o início do Campo da Garoupa na Bacia de Campos, mais uma vez o legislador reconhece tal direito pela Lei 7453 de 27 de dezembro de 1985, que determinou que tal pagamento incidiria pela produção marítima, com o ressarcimento à União, Estados e municípios, diretamente envolvidos e confrontantes aos campos. Legislações posteriores sempre surgidas após amplo debate pela sociedade como a própria Constituição de 1988 pelo Artigo 20, a Lei 9478/97, que regulamentou a quebra do monopólio constitucional estatal do petróleo (artigo 177), definiu tais pagamentos a Estados e municípios, sempre amparados em critérios técnicos, amplamente utilizados ao redor do mundo e até então não questionados como àqueles definidos como extensão dos limites territoriais de Estados e municípios pelo IBGE através do decreto 93.189 de 29 de agosto de 1986 e que alguns projetos legislativos também oportunistas e casuais tentam alterar. Desta forma, todas as legislações desenvolvidas com o debate profundo e sem a influência da cobiça econômica e eleitoral apontaram para a lei que se aplica hoje e que só agora após muito tempo como província produtiva, traz benefícios ao Rio, seus municípios e futuramente também a muitos outros, em especial de Estados como Bahia, Espírito Santo e agora São Paulo. Se percebe que praticamente todos os movimentos e projetos de lei que surgiram nos últimos 10 anos tiveram relação com alguma oportunidade política casual ou interesse paroquial. Tal oportunismo e cobiça não é monopólio brasileiro e até mesmo se pavimenta em outras áreas na geopolítica do petróleo mundial quando "forças ocultas" do exterior tem a mesma postura de, em função das descobertas em nossa plataforma continental que aproximam cada vez mais dos limites da nossa costa, reabrem tais discussões de limites territoriais em fóruns internacionais e se mobilizam em "forças de paz e humanitárias" como, por exemplo, a recriação da Quarta Frota pela Marinha Norte Americana. Querer proporcionar essa tese de defesa da atual legislação de distribuição de royalties não é concordar ou santificar as aplicações indevidas em especial aquelas feitas por muitos municípios que contraditoriamente tem tido a oportunidade, desperdiçada, de reduzir o seu nível de pobreza, próximos a de paupérrimos municípios nordestinos, já que têm investido em atividades sem qualquer critério ou relevância econômica, como shows e obras faraônicas geradoras de custeio futuro em vez de promover investimento em educação e em infra-estrutura.

Leis locais

Aliás, talvez aí esteja a grande oportunidade de mudança e que infelizmente tem sido colocada ao largo de um debate sério sobre o assunto que é a melhoria da transparência e também da aplicação dos recursos dos royalties e das participações especiais. Tais distorções porém se corrigem com legislações locais no âmbito dos legislativos estaduais e das Câmaras Municipais, que podem definir regras de aplicação regional e formas de dar maior transparência a aplicação dos recursos. Neste contexto a própria experiência do Estado do Rio é positiva já que, por força da sua legislação local, investe parcela significativa de seus royalties para recuperação do meio ambiente através de constituição de um Fundo próprio para este fim denominado Fecam. Também de forma contraditória ao discurso corrente da má aplicação e se colocando como uma grande oportunidade para atuação do ilustre senador Mercadante, pois está em sua esfera da sua tradicional atuação orçamentária federal, seria corrigir a pior aplicação dos recursos dos Royalties e das Participações Especiais que são os seus desvios e as suas não aplicações. Isto aconteceu visando o contingenciamento de recursos para formação de superávits primários, e que sistematicamente deslocam recursos, legalmente arrecadados, para o Governo Federal que estariam destinados a aplicação no meio ambiente, para a ciência e tecnologia, para o Comando da Marinha e para a própria ANP, dificultando o levantamento geológico das Bacias sedimentares o que é uma demanda devida, necessária e estratégica para ampliar as reservas de petróleo e gás no Brasil. Ademais, tais modificações de postura são ações simples e sem mudança de lei e sendo só de esfera administrativa por descontingenciamentos que poderiam irrigar, imediatamente, as novas políticas ou fundos, soberanos ou não, para desenvolver diversas outras políticas inclusive para educação tecnológica.

Bônus especial

Também vale lembrar que existe outra oportunidade legal para suportar novos investimentos em regiões carentes do país ou investimentos para criação fundos de qualquer ordem, poderiam advir da vinculação do chamado "Bônus Especial" também criado também na Lei 9478/97, em seu Artigo 45 e que já foi objeto da arrecadação de bilhões de reais e que poderá ser de mais de dezenas de outras, diante dos prováveis leilões de concessão de novos blocos do pré-sal. Desde 1999 estes recursos têm sido transferidos ao Tesouro sem qualquer direcionamento a Estados, municípios, ANP ou aplicação em projetos estruturantes para o país. Como fui durante oito anos secretário de Estado do Rio de Janeiro de uma pasta voltada para este assunto profissional específico, e ex-membro do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), onde enfrentei os mais mirabolantes e absurdos projetos que visavam a alterar tal distribuição, todos congelados sem lograr o êxito, não poderia, nesta nova onda, me calar sobre este tema e alertar ao nobre senador, que mesmo com toda admiração que nutro por ele, até acreditando nos bons princípios que levam a ele empunhar tal bandeira, que esta vai na contramão das práticas conciliatórias e da busca do equilíbrio federativo tão bem desenvolvido pelo presidente Lula. Portanto, este alerta para o bem da história e do amigo Estado vizinho que através das propostas adubadas pela ação do senador, poderão abrir a "Caixa de Pandora" das boas relações entre Estados e municípios em todo país e como diz ainda a expressão popular "dar um tiro no seu próprio pé" afetando definitivamente e negativamente o futuro da arrecadação financeira do Estado de São Paulo e de seus diversos municípios.