Título: Da 'degradação' à reforma
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/02/2005, Editorial, p. A3

Dizem que o fundo do poço é o lugar que se precisa atingir, na queda, para se tomar o impulso de subida - e dele sair. Se é assim, as condições atuais são mais do que propícias a uma profunda reforma político-partidária no País, pois não há lembrança de período, em nossa História, em que os partidos políticos tenham passado por tão galopante processo de desgaste e desmoralização. Neste sentido entende-se que FHC tenha dito (no Correio Braziliense de domingo) não se lembrar "de ter visto nenhum momento de tanta confusão partidária". E o ex-presidente da República não deixa de apontar onde recai grande responsabilidade - se não a maior - por essa situação de verdadeira implosão partidária, ao dizer, claramente: "Um governo que se elegeu com a história de um partido devia ter entendido que os partidos são importantes e que não vale o preço destruir partidos para governar."

O bochinche que resultou na surpreendente eleição do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara dos Deputados e continua depois da investidura do "rei do baixo clero" parece longe de acabar e até sugere cômicos paradoxos. Por exemplo, disse Severino: "Eu fui eleito presidente da Câmara graças à incapacidade do Genoino." Ora, se assim foi, Severino deveria mais era agradecer ao presidente do PT - por lhe ter dado a inesperada oportunidade de se tornar o terceiro nome na sucessão presidencial - e não insultá-lo, sem obediência a quaisquer normas de civilizado convívio, com expressões e qualificativos do tipo "incapaz", "trapalhão", "desordeiro" e pessoa que só diz "asneiras". Mas, certamente, há tarefas muito mais importantes a cumprir - da parte dos dois presidentes, o da Casa Legislativa e o do partido que está no comando do governo federal - do que dar vazão a animosidades pessoais.

É possível - quem dera fosse provável - que uma dessas tarefas diga respeito à reforma político-partidária. É evidente, contudo, que, se o PT se dispõe a liderar uma reforma nesse campo, precisa fazer seu honesto ato de contrição, admitindo sua responsabilidade na "degradação" a que chegou o quadro partidário caboclo, antes de travestir-se de paladino da "fidelidade partidária".

Afirmando que sua missão, neste ano pré-eleitoral, é a de convencer os partidos da necessidade de "mudar as regras do jogo", o presidente do PT enfatizou (em entrevista a este jornal, segunda-feira): "A infidelidade partidária chegou a um ponto tão degradante com esse episódio na Câmara (a eleição de Severino) que ou nós fazemos reforma política ou os partidos vão sucumbir." Sem dúvida, quanto a isso José Genoino tem toda razão. Só do fim de janeiro até a semana passada nada menos do que 50 deputados federais mudaram de sigla.

O novo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), é mais radical em seus argumentos a favor da reforma política: "Estamos vivendo a morte definitiva do sistema político-partidário brasileiro, sobretudo em função dos fatos que estão acontecendo na Câmara." Considera ele que, tendo a situação chegado ao limite, os parlamentares concordarão em mudar as regras que os elegeram, mas desde que a opinião pública se mobilize. Se a sociedade quiser conviver com um sistema "absurdo, carcomido e velho", nada acontecerá. Mas, se fizer pressão para a mudança das regras, isso acontecerá inevitavelmente, prevê Renan Calheiros.

O que não foi dito é que o governo tem a maior parte das responsabilidades pela desmoralização do sistema político-partidário, e não dá mostras consistentes de que queira promover a reforma. Já nos primeiros dias do governo Lula, os articuladores políticos do Palácio do Planalto e a direção do PT trataram de promover o aumento substancial da base parlamentar de sustentação ao governo, por meio da volumosa transferência de deputados para siglas aliadas (poupando-se, assim, da direta "receptação fisiológica"). E, nas últimas semanas, repetiu-se a dança das cadeiras, numa acomodação espúria que levou em conta toda sorte de interesses, menos os da legítima representação dos eleitores.

Se o presidente do PT e suas lideranças empreenderem um real esforço em prol da reforma político-partidária e, além disso, se empenharem contra o corporativismo severino, a começar pelo combate ao cumprimento da promessa - severina - de duplicação de ganho dos deputados federais, será possível a sociedade brasileira ter esperança na regeneração dos hábitos políticos.