Título: BC entre fato e direito
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/02/2005, Editorial, p. A3

O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, não desiste da autonomia do Banco Central (BC), embora não esteja entre as prioridades indicadas pelo presidente da República na mensagem anual ao Congresso. Um BC livre de influências político-eleitorais tem mais força para controlar a inflação, segundo o ministro e outros defensores de um novo status legal para a autoridade monetária. Palocci, no entanto, provavelmente encontrará obstáculos no Palácio do Planalto, se quiser enviar ao Legislativo, neste ano, um projeto de reforma do BC.

Apesar disso, modelos de autonomia foram o tema principal da reunião da Câmara de Política Econômica, na reunião de quarta-feira. Participaram do encontro ministros das áreas econômica e política. Um estudo foi apresentado como base para a discussão e o objetivo de Palocci, com certeza, não foi a realização de uma tertúlia acadêmica.

O ministro da Fazenda havia anunciado, no fim do ano, que um de seus assuntos prioritários em 2005 seria a autonomia do BC. Ele e seus principais auxiliares têm insistido nessa reforma desde os primeiros dias do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O compromisso de promover essa reforma foi anunciado em janeiro de 2003, como parte de um conjunto de ações destinadas a reforçar a credibilidade financeira do País e como instrumento de estabilização.

O governo conseguiu, em seus primeiros dois anos, derrubar o índice do risco País e ampliar o acesso do Brasil ao mercado financeiro internacional. O Tesouro e o setor privado têm obtido financiamentos em condições bem mais favoráveis que as do início do mandato do presidente Lula.

O avanço ocorreu mesmo sem a abertura oficial do debate sobre o status do BC. Na prática, a política monetária tem sido executada como se os dirigentes da instituição já tivessem autonomia operacional. Há notícias de que o presidente da República manifesta, ocasionalmente, algum desagrado em relação à política de juros. Publicamente, no entanto, ele defende essa política e insiste em dar a impressão de que os diretores do BC trabalham segundo critérios próprios.

Mas é evidente que essa autonomia, exercida de fato e sem suporte legal, é muito precária. Freqüentes pressões contra o Comitê de Política Monetária (Copom), responsável pela política de juros, partem de setores do Executivo e também de políticos vinculados ao governo.

O novo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, disse que o BC precisa de um cabresto, em entrevista para a Folha de S. Paulo. A fala de Cavalcanti, exemplificando cruamente as preocupações político-eleitorais do dia-a-dia, mostra com clareza o tipo de pressão a que pode ficar sujeita uma autoridade monetária encabrestada.

O ministro da Fazenda poderia recorrer a esse exemplo para mostrar ao presidente Lula a conveniência de mandar ao Congresso, neste ano, um projeto de autonomia operacional para o BC. Esse projeto deveria incluir mandatos para os diretores da instituição, de preferência não coincidentes com o período da Presidência da República. O Executivo preservaria, com a reforma, o poder político de fixar a meta de inflação, ficando para o BC a função exclusiva de executar as ações necessárias para se alcançar o número desejado.

Seria um fator de segurança e de previsibilidade. A execução da política não ficaria na dependência dos objetivos e humores mutáveis do presidente da República ou de seus ministros. A experiência internacional mostra as vantagens dessa reforma, especialmente no caso de países, como o Brasil, sem tradição de estabilidade monetária. Mesmo no Reino Unido, com uma tradição muito diferente da brasileira, o governo julgou conveniente, há alguns anos, oficializar a autonomia operacional do BC.

Mas essa argumentação talvez não convença o presidente Lula, neste ano. Embora mantenha o apoio à diretoria do BC e à sua autonomia de fato, o presidente poderá julgar politicamente inoportuno, em 2005, abrir o debate sobre o assunto no Congresso. É o que parece indicar sua mensagem aos parlamentares. É uma situação pitoresca: o BC permanece imune de fato à pressão política, mas politicamente impedido de ganhar a autonomia de direito.