Título: Ética e saúde
Autor: Dom Cláudio Hummes
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

O Ibope, em sua última grande pesquisa de 2003, realizada de 19 a 23 de junho, em todo o território nacional, sob o número OPPO75/2003, disponível na Internet no endereço http://www.ccr.org.Br/arq/ccribope.pdf, mostra à pagina 9 que 90% da população brasileira é contra a ampliação das leis que descriminam o aborto, número bastante maior do que o apontado pelas estatísticas de 15 anos atrás. Este porcentual foi constatado especialmente entre as mulheres que opinaram.

O número reportado pelo Ibope foi confirmado pelo menos por duas outras pesquisas amplamente veiculadas pela imprensa escrita e falada no Brasil, durante o ano de 2004. Uma delas foi a pesquisa divulgada em 28 de março de 2004 pela Rede Globo de Televisão, que revelou no programa Fantástico, dos domingos à noite, que não só a maioria dos jovens brasileiros é contra o aborto em geral, como também em 12 de 14 capitais pesquisadas a maioria das jovens (sexo feminino) é contrária à interrupção provocada da gestação. O texto que apresenta a pesquisa pode ser encontrado no seguinte endereço: http://fantastico.globo.com.Fantastico/0,19125,TFAO-2142-36048,00.html.

Além do Ibope e da Rede Globo, o editorial da revista IstoÉ, em sua edição de 5 de maio de 2004, afirma que dois de seus repórteres tiveram acesso a uma pesquisa de opinião pública que seria divulgada em sua totalidade nas semanas seguintes, sem que até hoje, porém, o tenha sido. Esta pesquisa, realizada pelo Instituto da Cidadania, um órgão fundado pelo presidente da República para assessorar as decisões do governo, entrevistou 3.500 jovens, dos quais 40% da Região Sudeste do Brasil. Constatou-se neste levantamento que 80% dos jovens brasileiros são contrários ao aborto. O texto do editorial da IstoÉ encontra-se no endereço http://www.terra.com.br/istoe/1804/1804_ editorial.htm.

Diante deste quadro, torna-se democraticamente insustentável uma revisão da legislação sobre o tema, no Brasil, que vise a ampliar a legalização do aborto, como vem sendo promovida agora novamente por órgãos do governo. Quem e que interesses estão por detrás? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou claramente aos bispos da presidência da CNBB que ele é contrário ao aborto. E com ele, como mostram os dados acima referidos, está a imensa maioria do povo brasileiro.

Mas as razões decisivas e determinantes para rejeitar o aborto são éticas, e não estatísticas. Aliás, tudo indica que as razões profundas, pelas quais a maioria esmagadora do povo brasileiro rejeita o aborto, são razões éticas, que o Estado deve respeitar porque está a serviço do povo. O Estado é laico, mas o povo tem fé religiosa e ética.

Para alertar a todos, o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunido em Brasília de 22 a 25 de fevereiro passado, publicou nota sobre o citado processo de revisão da legislação brasileira referente ao aborto. A nota começa dizendo que estamos no terreno do necessário respeito à vida e à dignidade humana. De um lado, "a questão do aborto traz para o centro do debate os direitos da mulher e, em especial, da gestante". Reconhece, então, a nota que "a busca e a afirmação dos direitos específicos da mulher são um verdadeiro progresso da sociedade atual". Então, acrescenta: "Respeitar, defender e promover os direitos da mulher é um dever de todos os que afirmam a dignidade inviolável dos seres humanos. Neste sentido, permanecemos (nós, bispos da CNBB) abertos a um diálogo construtivo com as mulheres e suas organizações, em especial, sobre os seus direitos." O texto prossegue: "Com a mesma convicção defendemos e apoiamos os direitos do nascituro. Sabemos, por testemunho de credenciados cientistas, que o ser humano, desde a sua concepção, possui o seu patrimônio genético e o seu sistema imunológico. Trata-se de um outro ser humano gerado, de modo que a mãe e o embrião constituem seres humanos distintos."

No âmbito dos direitos da mulher gestante e dos direitos do nascituro, podem, contudo, ocorrer graves problemas de saúde, quando a gestante decide abortar e o faz em situações clandestinas, por medo da lei que o proíbe. A nota da CNBB reconhece, obviamente, que se trata de um quadro desolador e grave de saúde pública, do qual o Estado, a sociedade e a Igreja não se podem desinteressar. Propõe "que se estabeleçam políticas públicas com programas adequados de orientação, assistência e saúde". Mas isto não pode levar ninguém a liberar legalmente o aborto, para que este fosse feito dentro da lei em melhores condições de assistência médica. "Não se pode sanar um mal com um mal maior", diz a nota. Seria eliminar o nascituro, passando por cima de seu direito fundamental à vida, para resolver problemas da mãe. A ética deve presidir também às políticas públicas de saúde.

Nossa Constituição, em seu artigo 5.º, protege o direito de todos à vida e o Código Civil, em seu artigo 4.º, diz: "A lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." O Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, que em seu artigo 4.º estabelece: "Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito está protegido a partir do momento da concepção, pela lei e em geral."

A nota ainda afirma: "A Igreja reconhece a laicidade do Estado. Esta, porém, não pode impedir que qualquer cidadão, cidadã ou grupos manifestem suas convicções e as proponham como diretrizes ou leis, seguindo os trâmites democráticos e parlamentares."

Dom Cláudio Hummes é cardeal-arcebispo Metropolitano de São Paulo