Título: O Uruguai da Frente Ampla
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2005, Editorial, p. A3

Um dos primeiros atos do presidente Tabaré Vásquez, assim que tomou posse, foi formalizar o restabelecimento de relações diplomáticas entre o Uruguai e Cuba, rompidas desde 2002. Termina aí, porém, o tributo que o presidente eleito pela coligação Frente Ampla/Encontro Progressista/Nova Maioria sentiu-se na obrigação de prestar ao castrismo. Tabaré Vásquez, assim como os presidentes Ricardo Lagos, do Chile, Lúcio Gutierrez, do Equador, Néstor Kirchner, da Argentina, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, já tiveram maior identidade com o esquerdismo radical ainda cultivado em Cuba. Chegaram à presidência de seus países, no entanto, como políticos de uma esquerda moderada, preocupada, sim, com os problemas sociais que não faltam na região, mas comprometida, sobretudo, com a estabilidade macroeconômica e a economia de mercado.

A eleição de Tabaré Vásquez por um conglomerado que reuniu desde políticos da esquerda democrática até antigos guerrilheiros expôs outro fenômeno que vai se tornando comum na América do Sul: o profundo desgaste dos partidos políticos tradicionais. Na Bolívia, no Equador e no Peru, os antigos partidos estão sendo substituídos, na preferência do eleitorado, por movimentos étnicos. Na Venezuela, a falência do tradicional sistema bipartidário abriu caminho para a ascensão do populismo de Hugo Chávez.

No Uruguai, a vitória da coligação Frente Ampla/Encontro Progressista/Nova Maioria interrompeu 174 anos de alternância no poder dos partidos Blanco e Colorado. Tabaré Vásquez contará com folgada maioria no Congresso, mas terá à sua frente uma imensa tarefa de reconstrução de um país cuja economia foi devastada por sucessivas crises. A dívida externa do Uruguai equivale a 106% do PIB. O perfil da dívida foi alongado em 2003, mas parte substancial dos US$ 12 bilhões é devida a organismos multilaterais, inclusive o Fundo Monetário Internacional, e as primeiras parcelas vencem no segundo semestre. Desde 1998, o PIB uruguaio encolheu cerca de 20%. O estado do bem-estar social que fez o país ser conhecido como a Suíça sul-americana já não existe e mais de 30% da população vive abaixo da linha de pobreza. Mais de 10% da população imigrou, em busca de melhores oportunidades em outros países.

Esta situação não será enfrentada com planos miraculosos, bravatas ou moratórias. A Frente Ampla, que há uma década pregava o calote da dívida externa, mudou radicalmente de posição. O senador José Mujica, que foi um dos líderes dos guerrilheiros tupamaros e hoje é um dos mais respeitados políticos do Uruguai, presidindo o Congresso, admite, quando muito, a renegociação de prazos de pagamento da dívida. Tabaré Vásquez, nem isso. Segundo ele, todos os compromissos serão honrados pontualmente. E, para tranqüilizar os mercados, logo após ser eleito, em outubro, Tabaré Vásquez indicou para o Ministério da Economia o senador Danilo Astori, notoriamente comprometido com a austeridade fiscal e a estabilidade da moeda.

Com Vásquez, o que mais mudará será a política externa. O bom relacionamento com os Estados Unidos, mantido pelo presidente Jorge Battle, será mantido. Mas as prioridades da diplomacia uruguaia voltarão a ser o Mercosul e o relacionamento privilegiado com o Brasil, que Vásquez visitará no dia 20 de março.

Aproveitando a presidência pró-tempore do Mercosul, ainda este ano, Tabaré Vásquez pretende fazer do Uruguai um instrumento de equilíbrio regional, agindo como o fiel da balança entre o Brasil e Argentina, e um elemento propulsor da institucionalização das relações políticas e comerciais do bloco. No campo institucional, sua meta imediata é a constituição de um parlamento do Mercosul. No que se refere ao comércio, sua plataforma inclui o estabelecimento de um cronograma para restabelecer "rapidamente" a disciplina da Tarifa Externa Comum, evitar a proliferação de restrições tarifárias e paratarifárias que distorçam o funcionamento do mercado ampliado. Pretende, ainda, fortalecer os mecanismos de coordenação de políticas macroeconômicas e consolidar os processos de integração física e de infra-estrutura entre os membros do Mercosul. Acima de tudo, seu objetivo é dar ao Mercosul uma única voz nas negociações multilaterais de comércio, ao contrário do que fez seu antecessor. Para o Brasil, não haveria programa melhor.