Título: A nobre arte da retratação
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2005, Nacional, p. A6

Luiz Inácio da Silva baixou a guarda, propiciou a oportunidade e o adversário valeu-se da chance. A este terreno, o da disputa política entre governo e oposição, ficam restritos os desdobramentos decorrentes da última, e desta vez gigantesca, insensatez verbal cometida pelo presidente da República. Objetivamente, os processos judiciais e legislativos contra o presidente não são ações com risco de chegarem a termo. Exageram de propósito os tucanos, quando engalanados clamam pela condenação de Lula por crime de responsabilidade; extrapolam governistas/petistas quando reagem como se golpistas estivessem à espreita sob o sol do cerrado, prestes a tomar palácios de assalto.

Outra superestimação da realidade é conferir a Severino Cavalcanti a propriedade da chave do destino presidencial. Diz-se que, pelo fato de como presidente da Câmara ter a prerrogativa de dar, ou não, prosseguimento ao pedido de processo apresentado pela oposição, Severino teria Lula "nas mãos".

Se as coisas no Parlamento dependessem exclusivamente de seus presidentes, convenhamos, nessa altura Severino já tinha posto a votos o aumento de 67% nos salários de suas excelências. Da mesma forma que o reajuste precisa (e agora carece) de apoio interno e externo, qualquer ato de caráter público necessita de respaldo para ir adiante.

Portanto, não é por aí a ferida profunda provocada pelo discurso-bomba de quinta-feira passada. A fissura na credibilidade da palavra presidencial é mais grave e este aspecto já foi por muita gente examinado. Agora chama atenção a recusa do presidente da República em se retratar de um equívoco cuja gravidade nem seus mais próximos assessores põem em dúvida.

O disparate do pronunciamento não é posto em questão por ninguém. A não ser pelo próprio presidente. Ele, além de defender seu direito de cometê-lo - "então apanho e não posso reagir?" -, ainda manda seu porta-voz negar que tenha tido a intenção de se desculpar ao falar, no dia seguinte, em "discurso atravessado".

Ficam então ministros, deputados e senadores na constrangedora obrigação de dar por não dito o que todo mundo ouviu ser dito, enquanto o presidente bate o pé.

De pura teimosia. Ou falta de atenção a ensinamentos da infância. "Desculpe, com licença, faz favor e obrigado" é o tipo do mantra materno que freqüenta das mais pobres às mais ricas famílias, independe de classe social e do material do qual é feito o berço. Alguns incorporam a lição, outros preferem ignorá-la.

Luiz Inácio da Silva já tinha demonstrado dificuldade em se desculpar em outras ocasiões. Duas vêm de imediato à memória: o episódio Larry Rohter, quando passou dias achando que a expulsão do jornalista era "questão de honra", e o caso do Conselho Federal de Jornalismo.

A impropriedade da proposta já era consenso dentro e fora do governo e Lula ainda fazia piadas com o assunto, chamando de "covardes" os jornalistas que o acompanhavam numa viagem, porque supostamente não teriam coragem de enfrentar os "patrões" e apoiar a criação de uma instância burocrática de controle à imprensa. Da enrascada - na qual também se envolveu sozinho - do jornalista americano, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, salvou o presidente. Do mau passo do Conselho, o livrou a Câmara.

Nessa história agora o governo arregimentou uma enorme tropa de defesa, quando Lula mesmo poderia ter dado conta do recado. Se fosse magnânimo como pensa ser, se a frase fosse casual e inocente como agora ele diz que é, se fosse o político hábil e o orador irresistível que acredita ser.

Palavra de honra

Daqui a 15 dias faz um ano que o ministro José Dirceu prometeu para dali a "duas semanas, um mês", pôr os "pingos nos is" do escândalo Waldomiro Diniz.

Entulho autoritário

O deputado Fernando Gabeira prepara pronunciamento contra a idéia do governo federal de formar em Cuba agentes do serviço de inteligência brasileiro.

O diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Mauro Marcelo de Lima e Silva, irá este mês para Havana a fim de tratar do assunto com os cubanos.

Gabeira considera o plano um perigo. Não só porque o tema seja estratégico do ponto de vista da segurança nacional - o que por si só não se presta de forma adequada a intercâmbios -, como também pelo fato de os agentes brasileiros receberem formação profissional em um país autoritário.

"Os critérios para obtenção e uso da informação em Cuba são inteiramente diferentes dos aplicados aos regimes democráticos." Gabeira teme um retrocesso "que amanhã pode se voltar contra nós". De fato, depois de substituir o SNI pela Abin para dotar o País de uma estrutura de inteligência livre da mentalidade vigente no regime militar, era o que faltava o Brasil importar, de uma ditadura, o conhecimento necessário à formação de seus profissionais na área.

Autocombustão

Os articuladores do S.O.S. Lula falam em "blindar" o presidente contra os ataques da oposição.

Já a respeito do exercício continuado do ateamento de fogo às vestes ainda não foram abertos os debates, não obstante a dedicação presidencial ao tema.