Título: Para os outros crimes da cidade, nenhuma pressa
Autor: Leonencio Nossa
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2005, Nacional, p. A8

Com duas semanas de vida, o recém-nascido de Nicivalda Miranda de Souza ainda não tem nome. "Todo bebê que nascia, quem dava o nome era o pai", diz Valda, como é conhecida, a feição de menina desmentindo os 28 anos e 6 filhos, e o travo de angústia no olhar. "Não tive ânimo ainda para dar nome." Enrolado num manto amarelo, o bebê balança na rede no alpendre do sobrinho de Valda, em cuja casa, na periferia de Anapu, ela se refugiou, depois do acontecido. Às 10h30 do dia 15, Cláudio Muniz Dantas, o marido de Valda, vinha trazendo um novilho seu da fazenda do Gaúcho, na gleba Mandacuari, área de assentamento de 150 famílias, a 29 quilômetros de Anapu. Já estava em sua terra, quando foi colhido por dois tiros. "Terminaram de matá-lo a pauladas", conta Valda. Cláudio, de 29 anos, permaneceu ali caído até as 13 horas, de chapéu, espora, o laço ainda preso no dedo, quando a polícia chegou. Valda recebeu a notícia na maternidade de Altamira, onde tinha dado a luz na véspera.

Uma investigação da morte de Cláudio teria dois fios condutores. José Vicente, o gerente da Fazenda Cospel, ocupada hoje pelo assentamento, teria oferecido R$ 25 mil pela cabeça de Cláudio, segundo o rumor que correu na mata. Para a polícia, é dinheiro demais para os padrões da região. A irmã Dorothy Stang, um alvo muito mais importante, teria sido morta com a promessa - não cumprida - de R$ 50 mil. José Vicente não foi mais visto na região.

Em abril, Cláudio foi com a mulher e os filhos para Repartimento, a 200 quilômetros de Anapu, para visitar sua família. Ficaram por lá mais de seis meses. Quando voltaram, em novembro, encontraram no lote de 100 hectares um homem chamado Madiano, que o havia comprado de outro assentado, Salvador, por R$ 8 mil. Salvador disse que já tinha gastado o dinheiro e não ia devolver. "A comunidade apoiou a gente e tiramos o Madiano de lá", recorda Valda. "O Madiano falou que ia perder os R$ 8 mil, mas meu marido não ia desfrutar da terra." Num entrevero com Madiano, Cláudio sacou de uma arma e disparou, ferindo um filho dele. Salvador e Madiano continuam no assentamento.

Alguns dias antes do assassinato, um outro assentado, chamado Divino, perguntou ao filho mais velho de Cláudio, de 12 anos: "Cadê seu pai, neguinho?" O menino respondeu: "Tá na roça." Divino arrematou: "Tenho muita coisa séria para falar com ele." Foi até o lote de Cláudio e fez alguns disparos, mas não atingiu ninguém. "Só não matou meu marido porque tinha mais gente lá." Há duas semanas Divino está desaparecido, diz sua mulher, que mora a duas quadras de onde Valda está hospedada.

ENERGIAS

Mas as investigações da morte da irmã Dorothy têm consumido todas as energias da Polícia Civil de Anapu. Assim, o assassinato de Cláudio - assim como o de Adalberto Xavier Leal, ocorrido às 23 horas do dia 13 - continua não esclarecido. "Não sei nem falar para você", diz Valda, os olhos marejados. "A gente quer só providência, investigar para pegar o culpado." "Fiquei com seis crianças para criar sem pai", continua. "Ele só deixou essa terra para mim." O lote tem manga e laranja no pomar, plantação de cacau e lavoura de arroz, além de cinco cabeças de gado, e uma cachoeira que é motivo de cobiça no assentamento. "Minha velha, no dia que eu morrer, essa terra é para deixar meus filhos em cima", dizia Cláudio a Valda. "Mas não tenho como, não sei cuidar de terra", aflige-se ela.

Em Repartimento, onde moravam, Cláudio ganhava a vida pescando. Em 2001, vieram tentar a sorte em Anapu. Aqui, ficaram sabendo do acampamento de sem-terra na Fazenda Cospel. Cláudio foi para lá. Ficaram acampados seis meses, até entrar para a terra. "Ele era muito iludido com terra, desde pequeno queria ter", conta Valda. "Estávamos caçando moradia. Foi pior. Se a gente soubesse que ele ia perder a vida, ficava onde estava." Pouco antes do assassinato, a família toda pegou malária - menos Cláudio e o recém-nascido. Ainda estão tomando remédio, mas já estão todos bem. "É uma coisa que a gente nunca adivinha, a morte."