Título: A lanterna permanece acesa
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Jânio Quadros, um anglófilo assumido, dizia que na fachada do Palácio de Westminster há uma lanterna, permanentemente acesa, para indicar ao povo que o Parlamento está aberto e funcionando. Se algum dia essa lanterna se apagar, os ingleses imediatamente pegarão em armas para defender a instituição. Não conferi pessoalmente, mas isso faz pleno sentido. Os britânicos - como todos os povos - se comprazem em falar mal dos seus políticos e se deleitam com escândalos envolvendo parlamentares. Mas o Parlamento, enquanto instituição, é sagrado. Ele é o santuário da democracia, o bastião da liberdade e a garantia maior dos direitos civis.

Em todas as nações democráticas é assim que deve ser reverenciado o Poder Legislativo. O Congresso Nacional, aqui, no Brasil, é alvo das mais diversas críticas. Há quem entenda que ele não funciona a contento, que atrapalha o bom desempenho do governo ou que custa muito caro aos cofres públicos. Mas ninguém ousa propor o seu fechamento. Bem ou mal, o Congresso é a casa do povo e a caixa de ressonância dos anseios nacionais.

Fui deputado federal por oito anos. Com base nessa experiência, posso afirmar, com convicção, que o Congresso funciona. Há, por lá, gente de todo tipo. Radicais e moderados, idealistas e oportunistas, cultos e ignorantes; só não existe um tipo de parlamentar: aquele que não foi eleito. Todos, deputados e senadores, representam algum segmento da população brasileira.

Ouve-se, pelos corredores, muita bobagem. Não há uma idéia, por mais absurda que seja, que não encontre por lá ao menos um defensor. Mas isso não importa. O entrechoque dos vícios individuais acaba resultando na virtude pública. Não sou capaz de apontar - em mais de um século e meio de história legislativa - uma única lei aprovada pelo Congresso que não fosse, se não a mais correta, ao menos a mais adequada para o momento. Os parlamentares, individualmente, erram, e muito. O Parlamento, como um todo, raramente comete erros.

A ascensão de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara dos Deputados, à primeira vista, parece contradizer essa minha afirmação. Afinal, ele não se elegeu tão-somente em função de sua proposta de aumentar os salários dos congressistas?

A resposta é não. O sr. Greenhalgh, candidato oficial do governo, estava marcado para morrer. A eleição deu-se em dois turnos. Na primeira votação, a plataforma corporativista de Severino obteve apenas 124 votos, menos de um quarto do total de deputados. Os outros 176 votos que ele amealhou na segunda votação eram todos votos antigovernistas. Votos de deputados que não estavam necessariamente pretendendo melhores salários e regalias, mas sim procurando uma forma de demonstrar seu inconformismo com o governo. E eleger Severino foi a forma que eles encontraram de fazê-lo.

A imagem pública da Câmara saiu arranhada? Num primeiro momento, sim. E o próprio Severino contribuiu para isso. Sem ter compreendido exatamente como e por que venceu, ele saiu por aí reiterando as suas convicções e assustou meio mundo. Teria a Câmara se transformado num "sindicato dos deputados"?

Longe disso. E o novo presidente da Casa, aos poucos, vai se dando conta da realidade. Apresentou um requerimento de urgência para votar o aumento de salários. Precisava, para tanto, da assinatura de metade mais um dos deputados, ou seja, 257. Não logrou obter mais do que 140 endossos, número muito próximo ao dos votos que ele obteve no primeiro turno da sua eleição. As principais bancadas parlamentares fecharam questão contra a proposta. Tentou, então, fazer passar o aumento por ato administrativo da Mesa da Câmara. Não teve êxito e agora reconhece que a idéia morreu.

Severino, católico ultraconservador, declarou-se radicalmente contrário às pesquisas científicas com base em embriões humanos. Não só se viu obrigado a levar o tema à votação como amargou uma acachapante derrota no plenário.

A Câmara, aos poucos, vai impondo limites às idiossincrasias de Severino. Ele não é um homem de letras, mas bobo também não é. Tem feeling político suficiente para perceber que não deve e não pode impor sua pauta própria à Casa que preside. Severino é apenas um instrumento. Foi eleito para reafirmar a independência da Câmara. Mas isso, por si só, não lhe permite vôos solitários.

O Congresso não erra, insisto em afirmar. As suas decisões são coletivas e é quase impossível que todos estejam errados ao mesmo tempo.

O sistema é cruel. A cada nova eleição, cerca de 50% dos parlamentares perdem o mandato e são substituídos por novos. Os congressistas são passageiros, mas a instituição é permanente. E ela raramente falha. Milhares e milhares de projetos são apresentados a cada ano, versando sobre os mais diversos temas. Poucas dezenas deles são aprovados. Existem freios e contrapesos em número suficiente para depurar as idéias e descartar as que são inapropriadas, danosas ou inconvenientes.

O comportamento individual dos deputados e senadores muitas vezes deixa a desejar. Há barganhas fisiológicas, mudanças de partido e toda sorte de atitude pouco louváveis. Mas nada disso afeta o desempenho do Congresso como um todo.

Eu, pessoalmente, por experiência própria, acredito e sempre acreditarei na instituição. Ela funciona e bom seria que os cidadãos se dessem conta disso. Ou, como em Westminster, se um dia a lanterna do Parlamento se apagar, todos se dispusessem a pegar em armas para defendê-lo.