Título: Vitórias da democracia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2005, Espaço Aberto, p. A3

Sob pressão - que é como nas sociedades democráticas os parlamentos votam projetos polêmicos de grande interesse e os políticos tomam as suas decisões - a Câmara dos Deputados aprovou por surpreendente maioria (352 a 60) uma versão próxima da proposta original da Lei de Biossegurança que o governo enviou ao Congresso em outubro de 2003. A lei aprovada autoriza o uso de células embrionárias humanas em pesquisas para fins terapêuticos, sob condições estritas, e regulamenta os estudos, o plantio e o comércio de produtos transgênicos.

Em quase 14 meses de tramitação, sob o duplo fogo dos ambientalistas capitaneados pela ministra Marina Silva, ferrenhamente contrários ao ingresso do Brasil na era da biotecnologia agrícola, e das organizações religiosas, a começar da CNBB, não menos hostis ao que entendem ser a destruição deliberada de vida humana, o projeto conheceu os altos, os baixos, os solavancos e os sustos da montanha-russa a que foi submetido. Na primeira votação, em fevereiro do ano passado, a Câmara simplesmente desfigurou o texto recebido.

De um lado, subtraiu-se da multidisciplinar Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) a atribuição de dar a última palavra, caso a caso, sobre a inocuidade dos transgênicos para o ambiente e a saúde. A ministra Marina conseguiu transferir essa prerrogativa para o Ibama, um reduto dos inimigos do cultivo de organismos geneticamente modificados. De outro lado, restringiu-se a pesquisa com as chamadas células-tronco às extraídas de organismos adultos ou do cordão umbilical - menos eficazes do que as dos embriões.

Felizmente, essa "vitória da bruxaria sobre a ciência", como resumiu à época um parlamentar, não se repetiu no Senado. Depois de exasperantes idas e vindas, com nomeações e destituições de relatores, o espírito e muito da letra da proposta governamental foram resgatados na versão que voltou à Câmara - e ali foi enfim aprovada. Da votação se ausentou o presidente Severino Cavalcanti, cujo conservadorismo o impediu de dar ouvidos à própria filha, deputada (estadual) e católica como ele, ativa defensora das pesquisas com células-tronco embrionárias para "salvar vidas".

Mas ninguém se bateu tanto no Brasil pelo progresso científico humanista como a bióloga Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo. Durante meses ela deu entrevistas, escreveu artigos e procurou políticos, autoridades e religiosos para explicar aos leigos a sua causa. O ponto culminante desse formidável lobby foi a presença, no Congresso, de deficientes físicos e portadores de doenças degenerativas, que um dia poderão se curar com implantes de células-tronco de embriões - por serem elas capazes de formar qualquer dos 216 tecidos do organismo, devolvendo-lhe as funções prejudicadas.

Menos dramática, mas não menos eficiente foi a pressão dos ministros da Agricultura, Roberto Rodrigues; Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos; Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan; e da Coordenação Política, Aldo Rebelo, pela restituição à Comissão de Biossegurança da indispensável autoridade, advinda de sua própria composição, em matéria eminentemente técnica - o risco potencial dos transgênicos. E a CTNBio, agora com 12 cientistas, 9 especialistas do governo e 6 representantes da sociedade, reconquistou de fato a autonomia surrupiada.

Quando ela tiver estabelecido que determinado transgênico não oferece perigo para a natureza e o consumidor, caberá a um Conselho Nacional de Biossegurança, composto por 11 ministros, a decisão estratégica de liberar o seu plantio em escala comercial, conforme a sua "conveniência e oportunidade". Pode-se argumentar que, em um sistema de livre iniciativa, tal autorização representa uma ingerência indevida do Estado na atividade econômica. Mas não se imagina um veto ministerial a uma cultura transgênica inofensiva e rentável. A soja GM, por exemplo, veio para ficar.

O essencial - e motivo de regozijo - é que os partidários do atraso, por desinformação, preconceito ideológico e crenças dogmáticas particulares, não lograram tolher nem a modernização da economia agrícola nem o avanço da ciência no País. Principalmente porque a sua derrota foi uma vitória da democracia, sob a forma de pressões sociais legítimas, fundamentadas na ética e na razão. Como aquelas que, na mesma quarta-feira, impediram que fosse adiante o plano escandaloso de aumentar em 67% os salários dos deputados e senadores.

Esta semana, em suma, a sociedade fez o Brasil ficar mais civilizado.