Título: A tríplice aliança
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2005, Editorial, p. A5

Tudo, na política externa brasileira, é superlativo. Não bastasse um ministro das Relações Exteriores para fazer do Brasil um líder mundial de países em desenvolvimento - já que a rationale petista considera melhor para o País ser o primeiro entre os últimos do que o último entre os primeiros -, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta também com o secretário-geral do Itamaraty e com um assessor especial para formular a política externa. Mas isso não bastava, diante da magnitude da tarefa, e agora o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu - aquele que controla cerca de duas centenas de grupos de trabalho, constituídos para dar soluções a todos os problemas que perturbam o governo -, também tem atribuições na área externa. Hoje, em Washington, ele discutirá com a secretária de Estado Condoleezza Rice questões transcendentais como as negociações para a formação da Alca, a aspiração brasileira de ter um lugar permanente no Conselho de Segurança, os últimos acontecimentos na América Latina e tudo o mais que couber numa agenda "ampla e aberta". Depois, o chefe da Casa Civil será recebido pelo assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, Steven Hadley, e o assunto será o convite feito por Lula ao presidente Bush, para que visite o Brasil.

José Dirceu já passou por Nova York, onde teve reuniões com investidores e acadêmicos e conversou com dignitários que servem na ONU. Ao secretário-geral, Kofi Anan, propôs a realização de uma conferência de países em desenvolvimento para trocar experiências - o que certamente resultará em grande prejuízo para os demais participantes - envolvendo programas de combate à pobreza.

Antes disso, José Dirceu, acolitado por Marco Aurélio Garcia, esteve em Buenos Aires, preparando a agenda do encontro entre os presidentes Kirchner e Lula, em Montevidéu. E, pelo que resultou do encontro, não poderia haver uma pauta mais grandiloqüente.

Afinal, aos dois presidentes juntou-se o coronel Hugo Chávez. E, assim, a "parceria estratégica" que Brasil e Venezuela haviam firmado dias atrás se transformou numa "aliança estratégica tripartite". Os argentinos, compreensivelmente entusiasmados com o fim da moratória de 2001-2005, eram os mais imaginosos. Viram na tal parceria um acordo para que Brasil, Argentina e Venezuela enfrentem, em conjunto, o FMI. "Temos de aproveitar esse momento para fortalecer nossas posições", afirmou o chanceler Rafael Bielsa. No comunicado conjunto que os três presidentes assinaram, porém, a bravata se esvazia: "Os processos de integração são, ademais, uma necessidade para concretizar a idéia de ir aos organismos multilaterais regionais e internacionais com a mesma posição, a fim de fortalecer a voz dos nossos países mais do que quando se expressam individualmente em tais cenários" - uma platitude que vem sendo repetida ano após ano.

O presidente Chávez, por sua vez, voltou a tratar do velho projeto de integração da PDVSA e da Petrobrás, agora com a participação da Enarsa argentina, do qual resultaria "a maior empresa energética estatal do mundo". Como o presidente Rafael Caldera já nutria esse sonho, e nada aconteceu, não será por aí que a "tríplice aliança" prosperará.

O presidente Lula também se deixou levar pelo clima de euforia e exagero: "A Comunidade Sul-americana de Nações está consagrada. Estou convencido de que vivemos um momento histórico muito importante e que a integração é um fato irreversível." Ora, isso foi dito num momento em que o Mercosul se esgarça, dilacerado por disputas internas; e o arranjo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina não passa de uma lista de exceções, em torno das quais algum dia poderá haver acordo.

Descontadas as efusões retóricas, o que sobra da tal "aliança tríplice" são temas sociais, como a pobreza e a desnutrição; econômicos, como a possível criação de um Banco Sul-Americano para o Desenvolvimento; e energéticos, como a garantia de abastecimento de combustíveis e a criação da megaempresa petrolífera, serão objeto de reuniões ministeriais que se realizarão em Caracas, Buenos Aires e Brasília, dentro de 30 dias. Os presidentes voltarão a se reunir durante a cúpula entre os países da América do Sul e os países árabes. Manteve-se, assim, a boa tradição diplomática, que considera um sucesso a reunião, técnica ou de cúpula, que só termina depois de marcada a data e o local da próxima.