Título: Severino e seu bode salarial
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Começo com a conhecida história de um trabalhador que reclamava das más condições da casa que ocupava na propriedade onde era empregado. Além de não responder ao reclamante, seu patrão colocou um bode como hóspede da mesma casa, com o que as reclamações se centraram no inconveniente animal. Depois de muito sofrimento e mais e veementes reclamações, ele foi retirado e o trabalhador não mais reclamou da casa.

Em Brasília é comum colocar um ou mais desses bodes numa proposta legislativa, via artigo, cifra ou outro meio que cause forte reação contrária, para que na negociação a retirada do incômodo facilite a aceitação do que de resto foi proposto, mesmo que tenha outros aspectos inconvenientes.

Nessa linha, há o risco de a proposta de aumento estratosférico do salário dos parlamentares federais ser apenas um bode para acomodar alternativa que eleve a remuneração "apenas" às nuvens, assim amaciando congressistas que se opõem à medida, bem como a opinião pública em geral, para um reajuste menor, mas igualmente indefensável nos seus méritos.

A proposta, agressivamente uma das mais malcheirosas já apresentadas na Casa, só foi pautada por conta da trapalhada de candidatos e eleitores que levou o baixo clero da instituição ao seu comando. Viesse este dos padrões usuais de escolha, mesmo não marcados por um primor de virtude, não ousaria tanto no escárnio com que a administração severina trata o povo, que transpira impostos campeões do mundo e se vê diante de insaciáveis exploradores do seu esforço.

Recordando o absurdo da idéia, num de seus caminhos começaria por fixar em R$ 21.500 a remuneração mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje ainda não há um teto formal e a maioria deles recebe cerca de R$ 17 mil. Segundo a Constituição, sua remuneração é que define o teto dos demais poderes.

Dado esse limite superior, entra em cena o "constitucionalista" Severino Cavalcanti a defender o teto de R$ 21.500 para os congressistas, dizendo estar simplesmente cumprindo a Constituição. Consultei um autêntico constitucionalista e soube que a Constituição fixa apenas um teto (o dos juízes do STF), mas de modo algum manda elevar o salário dos congressistas a esse teto. Ou seja, o que bate no teto é a cabeça de quem trouxe a proposta.

Qualquer analista de cargos e salários concluirá que não há termo de comparação entre as atividades exercidas pelos congressistas e a dos ministros do STF. Destes se exige dedicação exclusiva, enquanto os parlamentares podem exercer outras atividades remuneradas. A equivalência seria defensável apenas para os presidentes da Câmara e do Senado, em face de suas maiores responsabilidades, mas não estendida a seus pares sem as mesmas incumbências. Vá lá que Severino presidente defenda o teto do STF também como seu, mas não o dos deputados e senadores em geral.

Quanto ao valor absoluto do teto, o dos ministros do STF, o mais razoável seria mantê-lo em torno dos R$ 17 mil já citados, que nas condições do País é valor suficientemente alto e atrativo para o cargo. Isto levando em conta seus benefícios indiretos, em particular o prestígio da função, do qual resulta após a aposentadoria uma recompensa contínua na forma de remuneração sem teto de pareceres e outros trabalhos jurídicos. Nunca vi a recusa de um cargo no STF por conta da remuneração, o que indica sua suficiência.

No caso dos congressistas, também não há razões para elevar seu valor atual (R$ 12.847 x 15 meses), tomando também em conta as condições do País e as do exercício do mandato. Além de não se exigir a dedicação exclusiva, o que recebe um congressista está mais próximo da receita de uma empresa, pois, além do salário, há verba de gabinete (R$ 35.350 por mês, que, num novo absurdo, se propõe ser ampliada para R$ 50.815), verba "indenizatória" (R$ 15 mil mensais, para gabinetes nos Estados de origem), cota de correio e telefone (cerca de R$ 4 mil por mês, conforme publicado na imprensa), passagens aéreas (cerca de R$ 10 mil por mês, idem) e auxílio-moradia (R$ 3 mil mensais). A verba de gabinete, mais a "indenizatória", em boa medida constitui financiamento público de futuras campanhas eleitorais, ao abrigar gente que trabalha com esse propósito, num privilégio não outorgado a candidatos sem mandato.. Somando tudo, a conta alcança perto de R$ 80 mil por mês, para essas empresas parlamentares, que, entretanto, escapam à tributação sobre outras prestadoras de serviços recentemente agravada pela Medida Provisória 232.

Dentro das condições do País, devem ser ponderados não apenas esses valores e o impacto orçamentário da idéia (que, entre outros impactos, repercutiria nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais, cujos parlamentares recebem proporcionalmente aos federais, e há estimativas de que só aí a conta total do reajuste severino chegaria a R$ 1,3 bilhão!), mas também o que ganha o povo em geral. Segundo o último levantamento do IBGE, de 2003, a renda média da população ocupada era de míseros R$ 692,10 por mês, e não era a modal (a mais comum), que o levantamento não divulgou, mas ainda menor, pois a maioria das pessoas ganha abaixo da média. Em síntese, a aprovação da proposta engordaria ainda mais uma classe de fortalecidos e bem pagos à custa de uma população enfraquecida (para não escrever outra coisa) e mal paga.

Portanto, aí está o que parece um bode, mas não será surpresa se vier um cabrito gordo, igualmente cheirando mal e com outras inconveniências. Se um dos dois ficar, em qualquer caso será novo sinal de que nesta fase lulo-severina nossa classe política, lamentavelmente apoiada nessas reivindicações pela cúpula do Poder Judiciário, está muitíssimo pior do que se imaginava.