Título: O maior calote da História
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2005, Editorial, p. A3

O presidente Néstor Kirchner não conseguia esconder o ufanismo ao declarar ao Congresso, na abertura da sessão legislativa, que a "dívida argentina está integralmente reestruturada", a adesão dos credores à troca de bônus foi maciça, podendo chegar a 80%, e que ele havia liderado "o mais gigantesco processo de reestruturação da dívida da história mundial". De fato, os métodos atrabiliários de Kirchner deram certo. Entre a perspectiva de ficar fora da renegociação, tendo de recorrer a tribunais internacionais para tentar recuperar suas economias, e aderir ao programa fixado unilateralmente pelo governo argentino, a imensa maioria dos credores preferiu contar com a possibilidade de receber, em prazos que variam de 30 a 42 anos, algo como 25% do que investiram.

Kirchner se gaba de ter liderado o maior processo de reestruturação de dívida da História. Questão de ponto de vista. Quem quer que tenha investido em títulos da dívida argentina, aderindo ou não à renegociação, certamente dirá que Kirchner aplicou no mercado financeiro internacional o maior calote da História. E durante muito tempo ecoarão os inúteis pedidos do FMI para que o governo argentino negociasse de boa-fé com seus credores.

As servidões financeiras da Argentina não se esgotam com a reestruturação da dívida. De um total bruto de mais de US$ 102 bilhões, o governo fez um engenhoso corte de juros - como se eles não fossem devidos - até reduzir o estoque da dívida para US$ 81,8 bilhões. Desse total, trocou títulos no valor de US$ 41 bilhões. Deixou um rastro de poupanças individuais arruinadas, em vários países industrializados. Tão cedo a Argentina não terá a confiança de novos investidores - exceção feita aos especuladores que aproveitarão a euforia que sempre se segue à conclusão de grandes negócios para tirar os maiores lucros possíveis com o comércio dos títulos argentinos no mercado secundário.

Também é preciso considerar que, com o fim da moratória, se esgota uma riquíssima fonte de financiamento dos gastos governamentais e de constituição de reservas internacionais. Desde dezembro de 2001, a Argentina não pagou um único centavo a seus credores privados - a exceção ficou por conta dos organismos multilaterais. Foram mais de US$ 20 bilhões que, dessa maneira, puderam ser utilizados pelo governo para aumentar salários, conceder subsídios e estimular a produção, além de reforçar reservas. A partir de agora, os vencimentos têm de ser respeitados escrupulosamente, e isso custará dinheiro. O presidente Néstor Kirchner já declarou várias vezes que não sacrificará os argentinos com a formação de um superávit fiscal acima de 3% do PIB. Estima-se, porém, que o serviço da dívida argentina, incluída a parcela dos organismos multilaterais como o BID, o Banco Mundial e o FMI, vá consumir algo como 8% do PIB.

Não será surpresa, portanto, se o governo argentino reiniciar as negociações com o FMI, interrompidas em meados do ano passado quando ficou evidente que o Fundo, na revisão semestral do acordo em vigor, não poderia avalizar a performance macroeconômica da Argentina.

Mas também não espantará se Kirchner, em vez de tentar reduzir as desconfianças do sistema financeiro internacional, afastar ainda mais os investidores da Argentina. Entusiasmado com os resultados da "negociação" da dívida - na verdade, decisões unilaterais que foram comunicadas aos credores -, Kirchner começa a dar o mesmo tratamento às empresas concessionárias de serviço público que foram privatizadas no governo Menem.

Durante 18 meses, Kirchner recusou-se a discutir as tarifas de serviços públicos, contrariando os contratos de concessão. Praticamente congelou tarifas, quando não as reduziu, mas não deixou de exigir que as concessionárias fizessem os investimentos previstos contratualmente. Com isso, deixou claro que, para ele, só valem os termos dos contratos que lhe são favoráveis.

Agora, o maior caloteiro da História anuncia ao Congresso, triunfante, que não tolerará que as concessionárias recorram a tribunais ou a árbitros internacionais para dirimir as questões com o Estado argentino - há pelo menos 33 demandas em curso no Centro Internacional de Dissídios e Arbitragens do Banco Mundial -, e não respeitará nenhuma decisão que não seja proferida por corte argentina. Para ele, a renegociação dos contratos deve ser feita "olhando-se para a frente (...) sem que fiquemos presos a contratos do passado". Ou seja, na Argentina, contratos não têm valor e lá não há estabilidade jurídica. Investimentos fogem desse tipo de ambiente.