Título: Trunfo da cara-de-pau
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com justo orgulho e compreensível euforia, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, comemora "a melhor negociação da História mundial", conseguida por seu país. Realmente, parece que Kirchner concretizou, de maneira espetacular, o velho ditado que diz: "O melhor negócio do mundo é comprar um argentino pelo que ele vale e vendê-lo pelo que ele pensa que vale" - pois os credores da Argentina fizeram justamente o contrário, dispondo-se a receber apenas 25% do que lhes é devido, e em 42 anos. É claro que aí os grandes tungados não são os spreadadores (que sempre se defendem muito bem), mas sim os pequenos investidores do mundo inteiro (inclusive do Brasil) que tentaram fazer seus pés-de-meia com base nos títulos públicos argentinos (quem sabe por amor ao tango e à encantadora Buenos Aires). Quando Kirchner anunciou, em 12 de janeiro, a indecorosa proposta de pagar a seus credores mediante troca de títulos, com descontos em torno de 75% da dívida - condição que impôs para sair do maior calote da história econômica das nações, decretado pelo governo argentino em dezembro de 2001 -, a reação que se viu em toda a comunidade internacional foi um misto de perplexidade, indignação e revolta. Era inacreditável que um país que se pretendia sério tivesse a cara-de-pau de oferecer aos que nele investiram um mico desse tamanho. Mas foi só isso o que o governo argentino ofereceu, sem admitir contraproposta e exigindo resposta (sim ou não) dos credores num prazo de 40 dias. O ministro da Economia, Roberto Lavagna, alardeou que a "legitimidade" de sua oferta se comprovaria a partir do momento em que obtivesse a adesão de, pelo menos, metade de seus credores. Por incrível que pareça, essa adesão chegou a 76%. Como se explica isso? Certamente, para o investidor caloteado o trabalho maçante de recorrer a instâncias judiciais - domésticas ou internacionais - com o objetivo de tentar receber, em porcentuais mais razoáveis, o que lhe é devido não seria motivo suficiente para a desistência de três quartos de seu investimento - pois há um limite de tolerância de perdas para cada investidor. Então, a aceitação resignada da transformação de um crédito na insignificância de sua quarta parte (e a ser recebido em 42 anos) só pode decorrer da certeza de que esse montante é algo (ou um pouquinho) mais do que o calote absoluto, ou seja, o nada ou o nunca receber. É aí que entra o grande trunfo de um país que pode ter perdido o compasso histórico em muita coisa - como modernização tecnológica, racionalização administrativa, reciclagem de seu parque industrial, aumento de produtividade, competitividade internacional de seus produtos (embora já comece a recuperar parte disso com a tunga de seus credores) -, mas jamais perdeu a superestima de si mesmo, a exacerbada autoconfiança ou a característica típica de quem "morre teso, mas não perde a pose". E é justamente a partir dessa hipertrofia de auto-estima que se permite afrouxar compromissos, desrespeitar contratos, não cumprir acordos, fazer pouco de convenções, tratados e regras - sejam comerciais, diplomáticas, desportivas ou de qualquer espécie - em seus relacionamentos internacionais. "Precisa ser muito cara-de-pau para falar em restrição de importações de produtos brasileiros quando o setor industrial argentino trabalha a plena capacidade, a economia cresce a 8%, a taxa de câmbio se mantém em 2,94 pesos por dólar e a carga tributária não passa de 19% do produto interno bruto (PIB) do país", disse o arguto presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, no começo do mês passado, ante a ameaça de a Argentina ampliar a lista de produtos brasileiros sujeitos a barreiras e a sua pressão em favor da adoção de salvaguardas no comércio entre os países do Mercosul. Mas, como o Brasil sempre cede às exigências e impertinências argentinas, na reunião realizada no Rio de Janeiro entre as delegações dos dois países para discutir os principais temas de seu contencioso comercial, apesar de antes se opor vigorosamente à introdução de quaisquer "salvaguardas" no Mercosul, o Brasil acabou propondo um "mecanismo para a expansão equilibrada do comércio bilateral", o que, no fundo, é uma admissão arrevesada das famigeradas "salvaguardas". Deixou-se muito barato, no Brasil - sem que a CBF ou qualquer entidade demonstrasse o mínimo interesse em tirar a limpo o sujo assunto -, a descarada e escandalosa confissão do ex-técnico da seleção de futebol argentina Carlos Bilardo (em entrevista à revista Veintetrês, estampada com a manchete Confesso que fiz uma armadilha) em que dizia ter mandado colocar calmante em garrafas de água dadas para os jogadores brasileiros beberem durante a partida em que a Argentina eliminou o Brasil (por 1 a 0, com gol de Cláudio Caniggia) na Copa do Mundo da Itália, em 1990. Pelo menos um jogador da seleção brasileira, Branco, foi vítima da criminosa armação, pois denunciara o fato logo após o fim daquele jogo. E, além da confissão espontânea do ex-técnico argentino, Maradona se incumbiu de confirmá-la em entrevista na televisão, quando, rindo e com ar de supino deboche, disse até o nome da droga soporífera que fora posta na água (e de drogas o homem entende bem), que era Rohypnol. Outra confirmação foi a do ex-meio-campo Pedro Toglio, que jogou na mesma partida contra o Brasil e disse que "nunca se deve beber água do adversário", como o técnico Bilardo "ensinara" à equipe argentina. Vangloriar-se de pespegar e tirar o melhor proveito do maior calote da História, desrespeitar tratados e acordos de livre comércio, jactar-se de fazer gol com a mão e de dopar, traiçoeiramente, colegas jogadores que apenas pediram água para beber (num dos atos mais abjetos já praticados em quaisquer competições esportivas, de todos os tempos) é, sem dúvida alguma, ter como maior trunfo nacional a pura e simples cara-de-pau (que talvez devesse substituir, por ser simbolicamente mais fiel, a cara-de-sol de certo pavilhão). Mauro Chaves, jornalista, advogado, administrador de empresas, escritor, produtor cultural e pintor, é autor, entre outros livros, de Eu não Disse? (Ed. Perspectiva). E-mail: mauro.chaves@attglobal.net