Título: Fabricando crises
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Democracia é coisa frágil. Como tal, cumpre a governantes e oposições tratá-la como bem precioso. Uma de suas regras lapidares é a alternância no poder. Tivemos muito poucas oportunidades de praticá-la. Fernando Henrique cumpriu dois mandatos - evento raro. A vitória de Lula decorreu de contingências históricas claras. O desgaste dos governos democráticos nos anos 1990 - América Latina afora - veio do endosso geral às normas do tal Consenso de Washington, que prometia a redenção. A percepção de fracasso dessas políticas, com o aumento do desemprego e da exclusão social, significou o reaparecimento de retóricas de confrontação. Um amplo espectro de governantes venceu as eleições questionando o "modelo anterior". Poderíamos enquadrar seus discursos e práticas no espectro entre "popular" e "neopopulista". Lula descobriu que a ortodoxia monetária lhe daria fortes vantagens junto às elites, e a vem praticando à larga. Tempera-a com uma política externa ousada e arguta que, até aqui, vem sendo tolerada com tranqüilidade tanto por Bush como pelos líderes europeus. Para essa tolerância colaboram as políticas de confrontação de Kirchner com o FMI contra uma dívida externa que o país não poderia pagar; também ajudam os rompantes de Chávez, favorecido por uma oposição golpista e um apoio latino-americano bem articulado pelo Brasil.

Circunstâncias complicadas, que não cabe discutir agora, permitem a Lula temporariamente fazer coincidir rigorosa ortodoxia monetária com importante retomada do crescimento econômico. Isso lhe permite mais espaço para um discurso que acalenta os movimentos sociais, tentando ganhar tempo à espera de mais eficácia em suas políticas. Mas, como a lógica econômica global é uma máquina de gerar exclusão, os buracos aumentam quanto mais água se joga no balde de políticas públicas assistencialistas. E o limite bate no orçamento público; para expandi-lo, só aumentando ainda mais a carga tributária. Essas são questões sistêmicas complexas, para as quais não há verdades absolutas e abundam discursos hegemônicos equivocados. Basta ver Ricardo Haussmann, um dos "pais" do Consenso de Washington, reconhecer que - ao contrário do que supunha e devido a "alguma coisa errada com as teorias de crescimento" - talvez seja necessário "mais Estado" para a América Latina crescer, e não o contrário. Ou acompanhar o competente ortodoxo Affonso Celso Pastore, deixando o Banco Central de Lula em palpos de aranha ao afirmar que é urgente a taxação do capital externo volátil que se aproveita dos nossos absurdos juros internos; não nos esqueçamos, no entanto, de que já os tivemos maiores no governo anterior.

Mas o que inquieta, neste instante, é uma antecipação prematura e inconveniente da radicalização política. Não é nenhuma novidade que o governo Lula não corresponde aos sonhos das elites brasileiras. Mas também é certo que um pacto de circunstâncias - que garante governabilidade - tem por ora caminhado bem, juntando a ortodoxia monetária e fiscal com a competência de Furlan e Roberto Rodrigues. Então, por que, de repente, se acirram ânimos e se cria um clima de eminência anti-republicana e perigo de caos? Vamos repassar algumas polêmicas recentes. A eleição de Severino para a presidência da Câmara dos Deputados revelou uma falha grave do governo, mas não significa o fim do mundo. A morte da freira Dorothy Stang não é fruto da radicalização do Movimento dos Sem-Terra (MST). Nessa matéria, aliás, talvez a nossa sociedade mostre pesada miopia. A maneira como Lula trata o eficiente MST permite ao movimento continuar articulando um amplo segmento de excluídos de todos os tipos - incluindo alguns oportunistas -, mantendo-os numa situação de certo controle institucional. Em outras circunstâncias, onde estariam eles? Lembremos, também, que ala do MST invadiu a fazenda da família presidencial na gestão FHC, foi tratada sem violência, negociou-se e o sol não desabou. Na área externa, há quem esteja muito preocupado com a reunião Mercosul-países árabes, estimulada pelo Brasil; no entanto, o próprio Bush parece estar tirando-a de letra. Aliás, numa futura transição cubana pós-Fidel, seria prova de inteligência se Bush estimulasse seu monitoramento via América Latina, e não pelos grupos radicais de Miami. No Haiti, pareceu útil a Lula prestar um "serviço" a norte-americanos e franceses; questionável, mas nenhum absurdo. A reforma universitária é outro bom exemplo: tem méritos e defeitos, mexe com pesados interesses, mas não parece um projeto obscurantista, como querem alguns. É dever da oposição e da mídia discuti-la, criticá-la, não desqualificá-la. Sua maior virtude é ousar um projeto, e temos carência total disso. É obrigação do Executivo formular projetos, e não deixar o País ao deus-dará das forças de mercado.

Enfim, não podemos cobrar de Lula um estilo que não seja o seu. Assim como não era lícito fazê-lo com FHC. O governo atual, com suas contingências históricas, prioridades e contradições, teria de ser diferente do anterior. Os descontentes com o governo Lula terão a oportunidade de se habilitar em hora própria e disputar as eleições. O governo que governe e defenda seus projetos, abrindo-os ao debate; a oposição que os questione; mapeiem-se os lobbies para que a opinião pública possa julgar. Mas é necessário muito cuidado com crises fabricadas de lado a lado e campanhas sistemáticas de desqualificação. Maquiavel, ao deparar-se com a difícil arte da governabilidade, já havia tornado a ética do governante mais plástica e pragmática. Mas democracia, entre nós, é santo frágil, que tem pés de barro. Devagar, pois, com o andor.

Convido os leitores interessados para o lançamento de meu último livro, Atores e Poderes na Nova Ordem Global (Unesp), com palestra, no próximo dia 17 (quinta-feira) às 19h30, na Livraria Cultura - Shopping Villa-Lobos.

Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais