Título: Decisão histórica na OMC
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Editorial, p. A3
Os Estados Unidos acabam de sofrer mais uma derrota histórica na Organização Mundial do Comércio (OMC), com a condenação final de sua política de subsídios a produtores e exportadores de algodão. A sentença do Órgão de Apelação, que encerra uma disputa iniciada em 2002, abre caminho para a contestação de subsídios concedidos a outros produtos, como a soja, o arroz, o trigo e o milho. É uma decisão de enorme valor político, porque estabelece um patamar a partir do qual se deve construir, na Rodada Doha, um novo sistema de regras para o comércio de produtos do agronegócio. A conclusão do processo não deixa dúvida quanto à gravidade e à extensão das violações de normas comerciais pela maior potência econômica do mundo.
Por isso, o aspecto mais importante desse episódio não é a vitória de uma parte litigante, o Brasil. É a condenação irrefutável de uma política de comércio que impede o bom funcionamento do mercado, estimula a superprodução, deprime preços e prejudica severamente dezenas de países que poderiam competir com sucesso, muitos deles paupérrimos.
Os subsídios condenados pelo Órgão de Apelação da OMC, o tribunal superior dos mercados internacionais, são violações do Acordo Agrícola assinado há uma década, no final da Rodada Uruguai de negociações comerciais.
Esse acordo nunca foi aplicado integralmente pelas grandes potências. Foram estabelecidas, na rodada, concessões especiais às maiores economias. Permitiu-se, com a chamada Cláusula de Paz, a manutenção de certos subsídios livres de contestação por alguns anos. Na prática, isso não foi considerado suficiente, e as políticas do Primeiro Mundo continuaram a distorcer os mercados.
O processo movido pelo Brasil contra os subsídios ao algodão americano resultou na condenação de sete programas, ou por ultrapassarem os limites fixados no Acordo Agrícola de 1994 ou por serem simplesmente incompatíveis com as normas em vigor.
Entre os anos agrícolas de 1999 e 2002, os produtores e exportadores americanos de algodão receberam, em média, anualmente, subsídios ilegais de US$ 3,27 bilhões. Na temporada 2004-2005, os subsídios irregulares são estimados em pelo menos US$ 3,76 bilhões.
Entre 1999 e 2002, os produtores brasileiros perderam, segundo estimativa oficial, US$ 480 milhões por ano, em conseqüência das distorções causadas pela política americana.
O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, tem defendido a abertura de novo processo na OMC, agora contra os subsídios à soja americana, que também têm contribuído para o excesso de produção. A queda de cotações a partir do ano passado é em parte explicável por essa política. Para o ex-secretário de Produção e Comercialização do Ministério da Agricultura Pedro Camargo Neto, é preciso ir além e contestar todo o sistema de subsídios distorcivos. Graças à persistência de Pedro Camargo, no governo anterior, o Itamaraty se dispôs a contestar os subsídios americanos ao algodão. As consultas iniciais ocorreram em 2002 e o processo foi aberto em 2003, depois de vencida a oposição do chanceler Celso Amorim que inicialmente se opunha à ação.
Com a decisão do Órgão de Apelação da OMC, os Estados Unidos são mais uma vez convocados para cumprir suas obrigações e ajustar sua política às normas acordadas por todos os membros do sistema comercial. O governo americano habitualmente resiste a cumprir as decisões da OMC e, quando o faz, protela as medidas.
Há sinais de que esse comportamento se repetirá. "Somos a favor de negociações, não de disputas", foi a resposta do Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, indicando que é preciso buscar a solução nas negociações da Rodada Doha. Comentário semelhante foi divulgado pelo Departamento de Agricultura. O senador Chuck Grassley, produtor de soja e presidente do Comitê de Finanças do Senado, disse que os países em desenvolvimento deveriam reconhecer que os maiores ganhos para os produtores serão obtidos com as negociações globais e não com a contestação de subsídios na OMC. Tudo isso é sintomático e inquietante: que autoridade moral tem um governo para exaltar negociações internacionais, quando não se dispõe a cumprir as regras acordadas? A nova decisão da OMC cria uma questão moral e não só um fato político e jurídico.