Título: Freio ao baixo clero
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Editorial, p. A3

Pelo menos a parcela da sociedade que se interessa pelo cotidiano da política conhece suficientemente a matéria de que é feita a mentalidade da centena de membros da bancada severina na Câmara dos Deputados - o baixo clero, como se convencionou chamá-la - para se surpreender com o seu ranger de dentes diante da decisão do presidente do Senado, Renan Calheiros, sobre o aumento dos salários no Congresso.

Depois de consultar os líderes das bancadas na Casa - o núcleo do poder parlamentar -, Renan negou apoio à esperteza de aumentar os salários dos congressistas por ato administrativo das duas Mesas, sem passar por votação em plenário, como propôs ninguém menos do que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, a que o seu homólogo da Câmara, Severino Cavalcanti, aderiu de imediato.

A idéia desse atalho que desembocaria na elevação dos salários também dos ministros do STF ficará incorporada à biografia do autor e apequenou a função que exerce na mais alta Corte judicial do País. Já no Congresso, o vexame - este sim, previsível - foi dado por Severino e pelos seus aliados mais próximos. Para eles, o ato de Renan "arranhou a relação da Câmara com o Senado". À moda dos grotões, o deputado-presidente avisou: "Vai ter troco."

O tempo dirá se efetivamente serão prejudicados os necessários entendimentos entre as duas Casas para a tramitação de projetos de vulto, como o da reforma sindical e, eventualmente, o da reforma política. Bastam, no entanto, tais manifestações - a parte publicável das invectivas contra o presidente do Senado - para mostrar pela enésima vez o que move essa subclasse de políticos.

Mas o mesmo episódio e a aprovação, na véspera, da Lei de Biossegurança sugerem que o estrago da gestão do "rei do baixo clero" deverá ser menor do que se temia. Primeiro, porque está claro que a sua eleição foi um acidente de percurso, provocado pela infeliz escolha do PT de um candidato com limitado trânsito junto aos seus pares e agravado pela candidatura avulsa de outro companheiro.

Diversos comentaristas já observaram que os 300 votos que lhe deram a vitória no segundo turno tendem a induzir ao erro de se crer na existência de uma bancada severina integrada por quase 60% dos 513 deputados. Bem-feitas as contas, severinos autênticos são, no máximo, os 124 que nele votaram no primeiro turno (alguns dos quais, para tirar da disputa o petista avulso), na expectativa dos salários e outras mordomias que ele prometera.

Os demais 176 aproveitaram a oportunidade ou para se vingar das desatenções do governo ou para fazê-lo amargar uma estrepitosa derrota política. Nada mais eloqüente, nesse sentido, do que o fracasso do segundo vice da Mesa, Ciro Nogueira, em obter as 275 assinaturas necessárias para apressar a votação do aumento. Ele dizia ter colhido 140 adesões. Sabe-se de signatários que recuaram depois de ver as suas caixas de correio inundadas de protestos.

O que aponta para a segunda razão de otimismo em relação aos limites do reinado severino. O baixo clero pode desdenhar da opinião pública, mas deputados de outros estratos pensam duas vezes antes de afrontá-la, quando se exprime com veemência incomum (desta vez, na esteira da indignação contra a tunga tributária da MP 232). Ainda mais decisivo é o papel dos líderes de bancadas para a conduta dos congressistas.

Atentas à grita da sociedade, as representações do PT, PSDB, PDT, PPS, PSB, PC do B e PV tomaram posição contra o aumento. A atuação das lideranças no episódio indica que a anarquia parlamentar na Câmara - do troca-troca de legendas à proliferação de candidatos avulsos à Mesa - está cedendo lugar à boa e velha ordem sem a qual não se fazem leis. A instituição, afinal, se defende.

Há uma regra não escrita na vida legislativa: o presidente da Casa pode o que lhe faculta o regimento interno, o que é muito, mas não tanto a ponto de levá-lo a ignorar o colégio de líderes. Por isso, o presidente Renan Calheiros, ao ouvir os do Senado sobre o aumento dos salários por obra de uma canetada, pode aparecer na TV como guardião da ética política (o que especialmente enfureceu os severinos).

Severino se deu mal nesse caso. Mas se deu bem ao não adiar a votação da Lei de Biossegurança e ao dela se ausentar, deixando de criar problemas para a liberação das pesquisas com células-tronco, reivindicada pela sociedade.