Título: O superávit necessário
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Editorial, p. A3

O governo não está disposto a discutir, neste momento, o aumento do superávit primário, que vem sendo proposto com insistência por economistas e foi defendido também pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em debate sobre o tema realizado no Rio de Janeiro por ocasião da apresentação do relatório da OCDE sobre o País, dois altos funcionários do Ministério da Fazenda, o secretário-executivo, Bernard Appy, e o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, deixaram claro que este não é um assunto em discussão no governo. A meta de superávit primário para este ano já foi decidida - 4,25% do PIB - e não será revista, garantiram. Seria melhor para o País que o governo mudasse sua postura em relação a essa questão.

Não se trata de colocar em dúvida a capacidade do governo Lula de administrar com firmeza e rigor as finanças públicas, ou mesmo sua convicção a respeito da importância da austeridade fiscal para a estabilidade econômica. A própria OCDE, que em 2001 duvidou da eficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal, reconhece que as autoridades brasileiras mostraram, desde então, muita determinação na defesa dessa lei, procurando até reforçar seus princípios, mesmo em condições adversas. A condução prudente das políticas públicas, diz seu estudo, propiciou os benefícios macroeconômicos que o País vem colhendo.

Mas a OCDE adverte: apesar dos avanços na área econômica e do crescimento expressivo no ano passado, o Brasil ainda precisa conquistar a confiança internacional e reduzir sua vulnerabilidade a uma eventual crise que afete os países em desenvolvimento no futuro. A obtenção de superávits primários mais elevados permitiria, por exemplo, reduzir mais rapidamente a relação entre a dívida pública e o PIB, importante indicador da capacidade do governo de honrar seus compromissos. "Não tenho nenhum número em mente, mas acredito que 5% (do PIB) daria mais conforto do que os 4,25% atuais", disse o vice-diretor do Departamento de Economia da OCDE, Andrew Dean.

Não é apenas em relação à avaliação externa do País que o eventual aumento da meta de superávit primário teria resultados benéficos. Neste momento em que, a despeito de seu rigor excessivo, a eficácia da política monetária é cada vez mais questionada, o aperto na política fiscal abriria algum espaço para a queda gradual da taxa Selic. Esta tem sido aumentada de maneira ininterrupta desde setembro, o que prejudica a atividade econômica, mas as seguidas altas da Selic não têm tido qualquer efeito sobre alguns focos da inflação, entre os quais os preços administrados e o aumento dos gastos do governo.

Com relação ao primeiro desses focos, pouco pode ser feito pela política monetária, pois a correção dos preços e tarifas de diversos serviços públicos está definida em contratos. Já com relação aos gastos do governo, estes podem ser reduzidos, ou pelo menos não deveriam crescer como cresceram em 2004. Cortes de despesas públicas reduzem as pressões sobre os preços e, assim, permitem o alívio da política monetária. A redução do juro básico, de sua parte, reduz o custo da dívida pública e melhora a situação fiscal.

Não se pode, porém, fazer cortes que produzam mais malefícios do que benefícios. Para atingir o superávit primário fixado, o governo tem cortado principalmente os investimentos e, se esse tipo de corte for praticado durante muito tempo, o resultado será o colapso dos serviços e da rede de infra-estrutura sob responsabilidade da União. Já há sinais claros de que, se novos cortes forem feitos nos investimentos da malha rodoviária, por exemplo, em pouco tempo o País verá, nessa área, uma crise de gravidade sem precedentes. O que o País precisa, na verdade, é de mais, e não menos, investimentos nessas áreas, para que o crescimento econômico não seja interrompido. Outras áreas, como a do ensino fundamental, também necessitam de pesadas aplicações de recursos públicos, para criar as condições de crescimento sustentado.

O governo não pode continuar cortando os investimentos. O que precisa ser cortado é o custo excessivo da burocracia. Isso exige reformas, algumas politicamente difíceis, mas quanto mais o governo adiar essa discussão mais caro o País pagará no futuro por isso.