Título: Frei Betto fala do diabo na terra do sol
Autor: Antonio Gonçalves Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2005, Caderno 2, p. D3

A intimidade com que o dominicano Frei Betto fala do diabo revela uma longa convivência com esse personagem quase sempre tratado com desprezo pela literatura e nunca com compaixão. Esse diálogo com o Príncipe das Trevas faz lembrar o do intelectual que vendeu sua alma a Mefistófeles na peça de Christopher Marlowe (Fausto). Nela, o demônio desce à Terra para atender ao chamado de Fausto, que desconfia estar diante de um impostor. Como, então, poderia o diabo estar a seu lado se seu lugar é no inferno, questiona Fausto. "E onde você pensa que estamos?", responde Mefistófeles. Da mesma forma, pode-se duvidar que um religioso tenha escrito um livro chamado Treze Contos Diabólicos (e Um Angélico) (Editora Planeta, 136 págs., R$ 29,90), mas não que lhe falte experiência para isso. Frei Betto, como se sabe, passou pelo governo como assessor especial do presidente, coordenando o programa mais polêmico de Lula, o Fome Zero. O mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, não se nega a falar sobre a renúncia ao cargo no governo federal, mas parece claro que uma passagem pelo Planalto corresponde mais ou menos a uma temporada na casa de Satã. "Concordo com Maquiavel e Max Weber, que identificam o poder como o lugar onde você pode fazer um grande bem ou um grande mal", reflete, antes de dizer que saiu do governo para escrever. "Sou um escritor compulsivo e sinto que meu grande desafio é a ficção", justifica, lembrando que essa antiga vocação para a literatura vem desde 1979, quando publicou seu primeiro livro de contos, Aquário Negro.

Treze Contos Diabólicos (e Um Angélico), o 52.º livro de uma carreira de obras dedicadas à teologia, problemas sociais e até culinária, foi escrito entre 2003 e o ano passado, período em que Frei Betto atuou como coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Seja por causa do "13" do título, referência - deliberada ou não - ao PT, seja pelo adjetivo "diabólico", os leitores podem imaginar que o livro seja uma alegoria dos pecados cometidos na esfera do poder. O poder, de fato, é tema de um dos contos mais surpreendentes (O Excluído), em que o demônio, com toda a segurança, refere-se ao inferno como a casa do poderosos. Por outro lado, Frei Betto nega que seu objetivo fosse o de construir uma parábola. "Literatura não se faz com mensagens políticas", resume.

Com certeza será difícil encontrar libelos políticos nesses contos curtos, em que o demônio abandona a imagem de entidade sobrenatural para ser o reflexo da alma humana. Contorcionismo sexual, ao contrário, é um dos passatempos preferidos dos engraçados personagens criados por Frei Betto, como o da beata dona Fininha, que faz um pacto com o demônio. A protagonista de O Pacto conhece o Cascudo numa jabuticabeira, escalada pela curiosa e lasciva Fininha, que acaba fisgada numa orgia pansexual com o Coisa Ruim. Em outro conto, ele assume a aparência humana, mas tem um atributo monstruoso que faz de dona Fininha e outras mulheres hóspedes regulares do inferno. Bem, não só as mulheres. Logo no primeiro conto, é um homem que hospeda o demônio em casa.

Nesse conto sartriano (O Hóspede), tudo se passa entre quatro paredes. O inferno continua mesmo sendo os outros, como defendia o filósofo francês, mas ele surge da transmutação de um demônio que reflete nossas almas egoístas. Assim, ao receber em casa um misterioso e silencioso ajudante, um homem sozinho passa a ser visto com curiosidade pelos vizinhos, que enxergam seu hóspede das mais variadas maneiras. "Não tive intenção missionária, apenas a preocupação de criar uma linha narrativa difusa", observa o autor.

Parece claro que o livro, apesar de não ser doutrinário, contesta a noção de pecado disseminada pela Igreja. Como defensor de uma nova teologia, Frei Betto não evita temas interditos. Fala de masturbação, sexo extraconjugal e até de de canibalismo nesses Treze Contos Diabólicos (e Um Angélico). "O inferno existe deste lado da vida. Deus não tem concorrentes. O inferno é o egoísmo, é quando a gente se fecha e se deixa dominar pela vaidade, pela prepotência e pelo prazer", conclui o religioso.

Simultaneamente, Frei Betto lança, dia 14, no Itaú Cultural, em São Paulo, o livro Saborosa Viagem pelo Brasil (Editora Mercuryo Jovem) em parceria com sua mãe, Maria Stella Libânio Christo. Desta vez, ele não fala de demônios, mas de cinco garotos que ensinam outras crianças a cozinhar pratos típicos do Brasil. Mas, como se vê, o religioso gosta mesmo de mexer com fogo.