Título: O sofrimento exposto de um líder da Igreja
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/03/2005, Vida &, p. A26

Emoção e lágrimas voltaram a rolar no domingo em Roma, quando João Paulo II abençoou a multidão de fiéis que se acotovelava diante da Policlínica Gemelli, em sua segunda aparição depois da traqueostomia. Não é a primeira vez que ele enfrenta problemas graves de saúde, mas pela primeira vez o declínio e o sofrimento de um papa podem ser vistos pela televisão em todo o planeta. Cristãos e seguidores de outras religiões que visitavam o Vaticano no fim de semana reagiam, emocionados, à coragem de Karol Wojtyla. Mas muitos se perguntavam se um papa tão enfermo deve seguir à frente de uma Igreja com mais de 1 bilhão de membros. "Ele não tem condições de continuar por mais tempo. Precisamos de alguém que esteja em sintonia com o mundo moderno e na plenitude da saúde", diz Tina Koch, uma professora alemã de 25 anos.

Depois de 26 anos de pontificado, João Paulo II lembra pouco o peregrino que conquistou o mundo com seu carisma. Aos 84 anos, debilitado pela artrite e pelo mal de Parkinson, "ele não tem a força necessária para enfrentar problemas atuais, como o conflito no Iraque ou o diálogo com o mundo muçulmano", afirma o italiano Umberto Rossi.

No entanto, o sentimento dominante na Praça de São Pedro era outro. Sidarth Auroa, um indiano católico que visitava a Capela Sistina, insistia: "Em nossa sociedade, respeitamos as pessoas mesmo quando estão velhas e não conseguem falar. Enquanto estão vivas, sentimos suas bendições."

Javier Elzo, catedrático em Sociologia da Universidade de Deusto, na Espanha, acha que as imagens do papa enfermo produzem uma mistura de pena e indignação: "O Vaticano insiste que essas imagens são uma lição de sacrifício e tenacidade. Para mim, João Paulo chegou ao fim de sua missão. O corpo já não responde à sua vontade. É desumano querer mantê-lo na função." Elzo não vê dificuldades em remover do cargo um papa nessas condições.

O porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro Valls, garante que a saúde do papa melhora a cada dia. Em mais um de seus previsíveis comunicados, divulgado ontem de manhã, ele anunciou que talvez João Paulo passe a Semana Santa em casa.

POP STAR

A doença, por enquanto, só fez aumentar a popularidade de um papa midiático. Seu livro mais recente, Memória e Identidade, é um best seller: os 350 mil exemplares da primeira tiragem esgotaram-se em uma semana na Itália. O endereço eletrônico, aberto há pouco na página do Vaticano na internet, recebeu, em dois dias, 50 mil mensagens de católicos de todo o mundo preocupados com a saúde do papa.

Para John Allen Junior, o mais credenciado "vaticanista" em atividade, a fama de João Paulo II fomenta o culto à celebridade que passou a representar ao longo dos anos. "Wojtyla acabou personalizando demais o seu papado, com seu status de pop star, suas viagens espetaculares, megaeventos na Praça de São Pedro, canonizações e beatificações por motivos particulares", afirma. "Seus pronunciamentos - sejam sobre casamento gay ou a universalidade da salvação através de Cristo - produzem confusão entre o que é opinião pessoal de um papa e ensinamento da Igreja baseado nas escrituras e na tradição."

Com trânsito livre na alta hierarquia do Vaticano, Allen diz que ninguém se atreve a falar muito alto sobre esses tópicos. "Mas existe, entre setores do clero, o desejo claro de lembrar ao mundo que o papa, qualquer papa, é importante pelo que representa, não pelo que faz ou diz. Existe também o desejo de retornar ao Evangelho e recordar que o guia da Igreja é Jesus, não o papa."