Título: Inanição e incúria
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Fonte: O Estado de São Paulo, 09/03/2005, Editorial, p. A3

A fotografia do Estado ilustrando a notícia sobre a oitava criança guarani-caiová morta este ano em Dourados, MS, é uma pungente expressão de uma tragédia dura de enfrentar e até de entender: a robusta índia Suzana Duarte vela o filho, Sulivan, morto com 1 ano e 4 meses. Ela, que antes já perdera dois filhos, parece prestes a velar mais um: em seus braços roliços, o caçula sorve de olhos arregalados os últimos instantes de uma vida que mal começou, a exemplo de outros 30 indiozinhos internados em estado crítico em hospitais da região e que poderão ter destino idêntico ao de 15 vítimas do mesmo mal naquela reserva, em 2004: desnutrição.

O contraste gritante entre a higidez aparente da mãe e a esqualidez do bebê desafia a lógica plana, a política indigenista oficial e as tentativas emergenciais necessárias (até urgentes!) com as quais o governo federal tem tentado evitar óbitos como os de Sulivan e seu irmão menor, mandando para a área uma força-tarefa para dar assistência aos índios desnutridos.

Clóvis Boufleur, membro da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi), inculpa em parte a política de confinamento das tribos em pequenas reservas, vigente até os anos 70 do século passado, pela quebra da tradição de lavouras em rodízio das três etnias - caiová, nhandeva e terena - que, com 11 mil almas, ocupam a reserva de 3,5 mil hectares em Dourados desde 1928. Segundo ele, essa tradição não pode ser mantida. A realidade mostra, contudo, que a questão é mais complexa, pois os índios foram os primeiros a abandonar o costume milenar, arrendando as terras de suas reservas a agricultores brancos e ficando sem suas plantações. Além disso, os problemas culturais apontados pelas autoridades como atenuantes para a ineficiência da própria política indigenista - como os alimentos em primeiro lugar para os adultos em idade produtiva, restando apenas as sobras para velhos e crianças - não são exclusivos de reservas pequenas. A morte de 5 crianças xavantes em Capinápolis, em Mato Grosso, no mesmo período, produziu menos estardalhaço que o caso de Dourados, mas serve para demonstrar que a mesma tragédia ocorre nas áreas maiores reservadas para índios em território nacional.

Problemas mais graves que esse e de solução menos difícil, se houvesse mais "vontade política" - expressão que o PT, hoje no poder, usava freqüentemente quando era oposição -, são os entraves burocráticos que dificultam o acesso das tribos a que as pequenas vítimas pertencem ao crédito oficial para a agricultura familiar e até a inscrição de seus núcleos familiares em programas assistenciais diretos como o Bolsa-Família. Os pais dos indiozinhos mortos não têm acesso a nenhum tipo de financiamento rural, porque não dispõem de documentação regular de propriedade das terras onde vivem e das quais tiram o sustento. Grande parte deles também não dispõe de documentação pessoal e, dessa forma, não pode cadastrar-se no Bolsa-Família.

Mesmo quando o Estado tenta suprir essas deficiências com programas emergenciais para combater a fome, o faz atabalhoadamente, sem um mínimo de organização e dispersando esforços. O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, informou que os R$ 5 bilhões do Fome Zero repassados em 2003 ao governo de Mato Grosso do Sul terminaram sendo diluídos entre várias secretarias estaduais. "Cada uma acha que resolve o problema pelo seu próprio meio. Mas quem está ali e sabe é a Funai", reclamou. Com ele concorda o médico Flávio Valente, relator da ONG Relatoria Nacional para Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural, defensor do cadastro único. Segundo este, "desde que a Funai deixou de centralizar as políticas ninguém mais assumiu esse papel de coordenação".

Sem coordenação e sem conhecimento de causa, as equipes emergenciais que levam a comida para acabar com aquele quadro pungente, em que brasileirinhos se assemelham às pequenas vítimas das guerras tribais africanas, compõem "kits-miséria" (chocante definição da sanitarista Sofia Mendonça, da Universidade Federal de São Paulo) contendo alimentos que as vítimas não estão acostumadas a consumir, como açúcar, óleo ou trigo, e não as farinhas de milho e mandioca, que comem habitualmente.

Ou seja, nossos pequenos índios estão morrendo mesmo é de inanição e incúria.