Título: Cego, Saliq não deixa de comparecer
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/01/2005, Internacional, p. A12

Não havia cédulas especiais para deficientes visuais e eleitores dependiam de amigos para poder escolher seus candidatos BAGDÁ - Por volta do meio-dia, a votação iraquiana assumia o formato de uma verdadeira eleição num colégio com dez urnas em Andalus, bairro de população mista da periferia de Bagdá. Havia grandes filas, eleitores nervosos por causa da longa espera e muita confusão. Na escola se registraram muitos eleitores de locais mais perigosos para votar, como Tikrit, Baquba e Faluja, áreas predominantemente sunitas, segundo explicou um funcionário eleitoral.

Perdido, um garotinho de 5 ou 6 anos procurava pelos pais em meio às filas. Cinegrafistas e fotógrafos emissoras de TV e jornais locais se espalhavam pelo pátio.

Um cego, conduzido por um amigo, ganhou prioridade para votar em uma das salas, aumentando ainda mais a confusão na fila. Saliq Shia'a entrou na cabine na companhia do amigo. Não havia cédulas especiais em braile para a votação de deficientes visuais. Os cegos tinham de pedir a um acompanhante para que votasse por ele.

Silqi Mohamed acompanhou Shia'a até a cabine, pôs a caneta na mão dele e segurou a mão para que ele mesmo marcasse o X na cédula.

Depois de mergulhar o dedo na tinta indelével, Shia'a deixou a sala orgulhoso e cercado por outros eleitores que o cumprimentavam por sua disposição de votar.

Quase ao mesmo tempo, no pátio, um homem empurrava bruscamente uma mulher coberta por véus. A brutalidade dos gestos chamou a atenção dos policiais iraquianos, que separaram os dois. Parecia ser um caso típico de agressão da mulher por parte do marido. "Na verdade, a mulher é a mãe dele", explicou uma testemunha.

Do lado de fora da escola, cartazes de propaganda eleitoral cobriam as paredes. Em um deles, do partido União Iraquiana da Juventude, aparecia a foto do jogador brasileiro Ronaldinho Gaúcho (ver na página A11).

Pelas ruas bem patrulhadas, eleitores faziam questão de exibir para jornalistas estrangeiros o dedo indicador marcado pela tinta.

À tardinha, no fim da votação, o clima era diferente na Escola Utba bin Ghazwan, no distrito central de Salhia, em Bagdá. As quatro salas de votação estavam quase às moscas. O número de mesários era muito superior ao de eleitores e o de policiais e soldados iraquianos na porta - que submetiam eleitores e jornalistas a três revistas sucessivas e não permitiam a entrada de pessoas com telefones celulares ou mesmo com simples canetas - era pelo menos dez vezes maior. Segundo os grupos que foram contrários à realização das eleições sob uma ocupação de fato e a mira dos fuzis, esse era um retrato muito mais fiel da votação de ontem.

ATAQUES

Apesar do imenso bloqueio montado por tropas iraquianas e americanas na capital, até o fechamento das urnas, às 17 horas, 8 homens-bomba se explodiram na frente de centros de votação em vários pontos de Bagdá, deixando pelo menos 20 mortos e dezenas de feridos.

Mas, para os padrões iraquianos das últimas semanas, o número ficou longe do banho de sangue que os grupos insurgentes ameaçavam promover.

O uso de homens-bomba em série para a realização de atentados tem uma razão de ser. O intenso patrulhamento das ruas, para o qual as tropas americanas em Bagdá foram reforçadas, tornou impossíveis ataques espetaculares com carro ou caminhão-bomba.

Além do uso de homens-bomba, os rebeldes tentaram atingir centros de votação e da administração eleitoral com granadas de morteiro, mas o fizeram a uma distância da qual não conseguiriam atingir os alvos. Só um desses projéteis alcançou uma delegacia de polícia, matando um policial iraquiano.

Sobre os homens-bomba, um iraquiano de Bagdá informou que eles têm preferência por lançar seus ataques antes do almoço, para que possam depois almoçar no paraíso ao lado dos anjos e das 70 virgens que, segundo a tradição muçulmana, estão reservadas aos mártires da jihad (guerra santa).

Como se previa, a maior participação se deu nas localidades xiitas ou de população mista. Como conseqüência, os xiitas - entre 60 e 65% da população iraquiana - e os grupos que os representam devem ficar com o maior número das 275 cadeiras na Assembléia Nacional de Transição, que terá papel fundamental para o futuro do Iraque. Caberá à Assembléia redigir a nova Constituição do país, além de escolher o novo governo, que deverá ser parecido com o atual gabinete interino, liderado pelo xiita moderado Iyad Allawi, cujo partido estava registrado com o número 285.

Allawi, assim como outros líderes iraquianos, votou na fortificada Zona Verde em Bagdá. "Este é um momento histórico para o Iraque, um dia em que os iraquianos podem manter a cabeça erguida, pois estão enfrentando os terroristas e começando a escrever seu futuro com as próprias mãos", declarou o primeiro-ministro interino.