Título: Guerra. Mas este médico segue rotina
Autor: Roberto LameirinhasEnviado especial
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/01/2005, Internacional, p. A16

'Tivemos três delas nos últimos tempos', explica Adnan Abid BAGDÁ - Médico dermatologista, formado pela Universidade de Bagdá em 1970, na mesma turma do atual primeiro-ministro interino, Iyad Allawi, o doutor Adnan Abid foi um dos 14 milhões de eleitores registrados que decidiu votar nas eleições de ontem. "Acredito que esta votação vá dar um novo rumo para o povo iraquiano. Vivemos um período de mudanças e todas as forças do país vão acabar entendendo que a democracia é o melhor caminho para superarmos a crise", declarou Abid. O médico, mulher e cinco filhos vivem numa casa confortável no distrito de Al-Saydia, uma região de maioria xiita no sudoeste de Bagdá. Uma filha, Nagem, vive no Brasil, em Jundiaí - nome de cidade que Abid mal consegue pronunciar.

O médico recebe na ampla sala da casa, com móveis de bom padrão e dois aparelhos de ar condicionado.

Fiel à tradição da hospitalidade árabe e falando um inglês fluente, ele se mantém sorrindo, ao lado da esposa. Chama todos que estão em casa à sala, para cumprimentar os visitantes. O filho mais novo, Ahmad, se encarrega de oferecer balas, chá e biscoito para todos.

"Vamos atravessar essa fase mais difícil, acredito nisso e acredito no progresso. Depois das eleições, teremos mais tranqüilidade para nos entender e para que todos os povos do Iraque se reconciliem - xiitas, sunitas, curdos, cristão, etc.", disse. "Claro que isso ainda vai levar algum tempo." A conversa é interrompida algumas vezes pelo barulho dos helicópteros que sobrevoam a área. A vizinhança não é tão pobre quanto a da maior parte dos bairros do restante de Bagdá, mas a resistência é ativa em Al-Saydia, que não é um local seguro para jornalistas estrangeiros.

Para chegar até o bairro, o intérprete e o motorista do Estado, que vivem nas áreas próximas, baixaram o pára-sol do carro e usaram óculos escuros, num esforço para não serem reconhecidos ao lado de estrangeiros. Eles explicaram que nunca se sabe quem pode vê-los ou que interpretação os habitantes locais poderiam fazer por estarem no mesmo veículo com dois ocidentais.

O doutor Abid segue a mesma rotina dos tempos em que o país ainda era governado por Saddam Hussein. Acorda cedo, vai trabalhar de carro, almoça em casa todos os dias e volta à tardinha, antes do escurecer e da vigência do toque de recolher. Trabalha em um hospital particular e dá consultas em clínica própria na cidade.

Nesse ponto, diz, seu dia-a-dia não foi alterado pela guerra. "Já não ligo mais para os efeitos da guerra", brinca. "Vivemos três delas nos últimos tempos, a Guerra Irã-Iraque, a 1.ª Guerra do Golfo e essa de agora. Estamos acostumados." Na região onde o médico vive, a energia elétrica normalmente é interrompida por três horas e restaurada pelas três horas seguintes. "A infra-estrutura do país precisa ser reconstruída", diz.